terça-feira, 25 de janeiro de 2011

mito de um garanhão

Um som profundo, distante, como o bater do coração. O leve tamborilar do sangue bombeado, atirado contra as veias, e acordo. Não é dentro, é um som do exterior, por baixo da minha cabeça, abafado pelas penas da almofada, do relógio ainda preso ao pulso. Ainda? Mas que horas são? O despertador deixou passar a hora, impunemente, sem sequer uma repreensão, e eu já estou atrasado, adormeci assim vestido. Lembro-me de estar sentado na beira da cama, enquanto tirava as botas, cansado, tão cansado que mergulhei no leito e em apneia me deixei ficar.
Não tenho tempo para analisar o que aconteceu, nem para um banho, nem mudar de roupa e esta barba que começa a cobrir o rosto e ao longo do dia vou ouvi-la crescer como ervas daninhas. Tenho de sair, no elevador ato os cordões, corro para o autocarro, se perco este então nunca chegarei a tempo, e logo hoje, logo hoje que fiquei com a responsabilidade de abrir a porta, eu que chego sempre a tempo. Cai uma chuva fraca, daquelas que nem parece que está a chover, mas que depois molha os que são tolos por pensar que não molhava!
E chego mesmo em cima da hora, parece que tão em cima que a pisei, e coitada ainda grita! Os olhares medem o tamanho da barba, a mesma roupa de ontem, o cabelo espetado para o lado em que adormeci: “Deve ter sido cá uma noite! Ganda maluco, as miúdas não te largam!”
Estou sem pequeno-almoço, sem jantar e sem lanche, a ratazana que habita o meu estômago teve ninhada! Mas pior que tudo é a falta do meu vicio, a falta do amargo e quente café!
Hora de almoço: tenho a peregrina ideia de ir a casa tomar banho e mudar de roupa, chove a potes, alguidares, panelas e tudo mais e abrigo-me no mesmo toldo da mesma loja, aquela de montra que continua vazia. E ela chega com o perfume de rosas, o cabelo preso ao cimo da nuca, e o rosto limpo e perfeito, onde moram uns olhos que não olham para mim. Cheiro a cão molhado, nem eu olharia para mim nesta triste figura e entro na chuva, esqueço as rosas e desejo diluir-me no aguaceiro, escorrer rua abaixo junto ao passeio, junto aos pés dela, verter no bueiro, escoar pelo esgoto, mergulhar de cabeça no rio e então desaguar no imenso oceano, e de novo tornar-me cartilagem, escama, dente afiado e barbatana.

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