quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

reflexo ou a montra onde jazem já mortas as moscas!

Alternando entre fraca, picada pelo vento, e forte, caindo aprumada, a chuva alimentava a esperança de a ver descer a rua e ali, sob o toldo da mesma loja, procurasse refúgio. A mesma rua de sempre, aquela que desci junto ao passeio, dissoluto na água, a mesma que me levou até ao mar, onde me tornei no que sou quando não sou gente!
Ela não vinha, pouca gente passava, olhava para a montra, vazia como sempre e pensava que hoje teria sido um bom dia. Contemplava o meu reflexo e pensava no mito de Narciso, de olhos brilhantes, cabelos anelados como os de Apolo, o rosto oval e o pescoço de marfim, impedido de se ver, apaixona-se por ele mesmo!
Um outro reflexo surge junto ao meu, o leve quase imperceptível perfume a rosas atravessa as cerca de 25 milhões de células olfactivas, tenho quase a certeza que as atravessou a todas! Disfarça um sorriso, prende-o pelo canto esquerdo da boca enquanto diz:
-interessante esta montra!
Ainda sob o efeito inebriante que o seu perfume provoca lá sai qualquer coisa como uma única letra:
-é!
E continuamos a olhar a montra, engulo em seco e procuro algo inteligente para dizer, o sangue retorna ao cérebro depois de se ter esvaziado todo algures pelo odor a rosas!
-não me canso de olhar para ela! Digo quase em desespero…
-qual delas? Pergunta ela, soltando o riso até agora contido, apontando para as moscas que jazem mortas sob a cartolina comida pelo sol!
- aquela ali, digo apontando para o seu reflexo, a dos cabelos ondulados, de olhos quase verdes.
-não é má! mas olha que aquele ali também não é de se deitar fora! Aponta para um homem corpulento, um trolha, que no interior da loja nos olha com estranheza. - Aquela barriguinha peluda, tão sexy!
-queres conhece-lo? pergunto, mantendo um ar sério.
-talvez noutro dia. diz, num tom sonhador, ao mesmo tempo trocista, mantendo o sorriso nos lábios. É a primeira vez que nos olhamos frente a frente. E aproveito a deixa para a convidar para um café.
- ainda nem almocei! reclama
-eu também não, mas já vinha preparado para te convidar para um café!
-então já vinhas preparado?! Não parecia…
-é, nunca corre lá muito bem!
-então vamos almoçar?
-costumas ir almoçar com estranhos?
-só as terças-feiras, às sextas não é muito comum, por ser para ti abro uma excepção, não somos assim tão estranhos, já nos abrigamos duas vezes no mesmo sitio!
-duas? pensei que não me tinhas visto naquele dia em que chovia a potes, cântaros e alguidares…
-claro que vi! o dia não me estava a correr nada bem, foi um mau dia.
-se foi…

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