segunda-feira, 7 de março de 2011

a queda

Fileiras de luzes fluorescentes em movimento, funcionam de modo semelhante aos tubos de descarga de gás néon, possuem um par de eléctrodos em cada extremo. O tubo de vidro é coberto com um material à base de fósforo, este, quando excitado com radiação ultravioleta gerada pela ionização dos gases produz luz visível. Internamente são carregadas com gases inertes a baixa pressão. As luzes pararam sobre mim. Alguém me pergunta o nome, a idade, fico sem responder, sei que o tubo de vidro daquela lâmpada está cheio de árgon, mas não sei o meu nome.
À medida que vou tomando consciência do sítio onde estou, as dores surgem, diferenciadas, umas mais intensas, outras muito superficiais. Reparo numa tira presa ao pulso, onde consta o meu nome, a minha idade…e faz todo o sentido. Tenho o pescoço imobilizado, a confusão à minha volta é grande, estou na urgência de um hospital, pessoas apinhadas em camas encostadas pelo corredor. Deslizo para uma sala, a roupa é cortada pelas costuras… o blusão de couro, agora me lembro, devo ter tido um acidente com a mota. Deslizo para outra sala onde me transferem para cima de uma plataforma, as dores vão diminuindo à medida que o conteúdo daquela bolsa de plástico, ali pendurada, vai sendo despejado na corrente sanguínea. Libertam-me do colar cervical e volto ao corredor. Um agente dirige-se a mim e entrega-me os documentos e as chaves de casa. Não consigo lembrar de nenhum número nem de ninguém a quem ligar, já me lembro da minha morada, mas números está complicado, é como um espaço em branco. Ele explica o que aconteceu, a mota foi levada para o parque da esquadra, o outro deu-se como culpado.
Sento-me, a confusão diminuiu um pouco, tenho frio mas não sinto dores. E reparo nela, sentada de perna cruzada, numa saia curta que provoca acidentes. Tem uma cauda que parece verdadeira, pendurada ao fim das costas, e um par de chifres que lhe dão um invulgar aspecto. Deve ser Carnaval…ela repara que estou a olhar fixamente para a ponta da cauda que tem vida própria, a droga que me deram é poderosa, dirige-se a mim e a cauda não fica caída, serpenteia atrás dela…
-donde é que tu caíste?
-de uma mota…respondo, sem desviar os olhos da cauda
-ainda não tens asas…devem levar uns dias a crescer…
-que asas? E pela primeira vez olho na transparência dos seus olhos escuros, realçados pelo negro da pintura.
-as asas que te vão crescer, nas primeiras vértebras torácicas.
-O que foi que andaste a tomar?
-nada anjo, não estou aqui por mim, só venho acompanhar uma amiga, e essa sim, tomou demasiado do que não devia. As asas que te vão crescer, imensas, brancas, penugentas…deves ter feito muita merda para te terem dado umas…
Volto a ser levado para a primeira sala, aquela conversa é tão surreal como tudo o resto. O médico espeta a radiografia da minha cabeça contra um quadrado de luz e comenta a dureza dos temporais, só agora reparo que tenho uma parte da cara raspada. Depois passa à coluna vertebral, distingue-se perfeitamente as cervicais das torácicas…estão intactas, sem cifose ou escoliose, invejável até diz o médico…e explica que vai doer nos próximos dias, receita um anti-inflamatório, o alcatrão que se fundiu à minha pele vai ter de ser raspado aos pouco.
Passo a mão pelo fundo das costas e sinto a pele dorida.

E foi assim que conheci Perséfone (não confundir com Penélope!) há cerca de 4 anos atrás, nas urgências do St. António, numa sexta-feira muito atribulada. Mas só a voltei a ver duas semanas depois.

No dia seguinte, as dores nas costas intensificavam-se, o fundo estava negro do alcatrão e de um enorme hematoma, mas a dor mais incisiva provinha de um pequeno corte, ligeiramente abaixo da linha dos ombros.
Na segunda-feira de manhã fiz um esforço para voltar à vida normal e ao trabalho, ganhei coragem e ergui-me da cama. A caminho da casa de banho, algo estranho como um sussurro atrás de mim, fez-me olhar por cima do ombro e tropeçar de susto.
Isto é um sonho! pensei, tenho de acordar...e fiquei estático em frente ao espelho, na penumbra, com receio de descobrir a existência de um par de asas brancas, imensas, penujentas, reflectidas um pouco acima dos meus ombros.
E foi assim que tive asas.

Duas semanas depois, uma cauda prendeu a minha atenção no meio de uma pista cheia, em dia de noite da mulher (era um sonho que eu tinha escrever em dia de noite...)… Alcanço a extremidade da cauda, a pele macia mas rija, e puxo-a. A primeira reacção é ríspida mas muda num segundo sorriso largo e interminável.
Pela primeira vez sinto as asas estremecerem, assim que ela passa a mão ao de leve sobre elas.
-como cresceram!… tenham calma que não vos faço mal!
-como é que sabias que iam crescer? E como é que ninguém as vê?
-tem calma anjo, vamos para outro sítio mais calmo conversar…
Saímos para o ar frio, livre do fumo, da acumulação de pessoas, do fedor humano.
-quando te vi no hospital estavas a olhar para a cauda e não para as minhas pernas… vi logo que eras diferente! consegues ver a minha cauda porque és um anjo, eu consigo ver as tuas asas porque sou uma diaba, no fundo não somos assim tão diferentes.
-mas eu não tinha asas…como é que sabias que não ia ser como tu? Ou só os anjos conseguem ver os diabos e vice-versa?
-não, também vês os outros anjos…ai lindo, que confusão deve ir nessa tua cabeça, uma das diferenças é que os anjos caem …e tu tinhas ar de quem tinha caído!
-isto é tudo muito irreal…
-já passei por isso…vais ver que te habituas, no fundo é tudo igual…ou quase tudo!
Entramos num táxi em direcção ao centro, fomos tomar um copo sentados na beira do passeio, enquanto assistíamos ao movimento dos cafés e pubs a fecharem as suas portas.
-desculpa insistir nisto, mas continuo sem entender…disseste no hospital que eu devia ter feito muita merda para merecer umas asas! Qual é a lógica?
-esquece tudo o que te impingiram até agora…tens uma segunda oportunidade, se te nasceram asas é porque não a podes desperdiçar como antes fizeste…é assim que funciona. De certa forma elas vão controlar os teus impulsos, aqueles que não conseguias controlar… se não as tivesses, de certeza que não estaríamos aqui ao frio a conversar! suspira...

Naquela noite acompanhei-a até casa, não subi as escadas, nem sequer transpus a porta de acesso ao prédio, estava colado ao passeio, despedimo-nos e ela voltou a afagar as asas, dizendo "até qualquer dia!"
E foi mesmo até qualquer dia, um dia que o destino lá traçou munido de régua e esquadro, com um estilete fino. Deu-lhe imenso trabalho, horas e horas de projecção, à luz de um candeeiro suspenso sobre o estirador…
Mais ou menos um mês depois ia a dormir no 604, não era muito comum adormecer no autocarro logo de manhã, mas as insónias faziam-me vaguear as últimas noites pelos lençóis sem conseguir pregar olho. Uma travagem brusca, e regresso à realidade. O motorista abandona o autocarro, um murmurinho espalha-se, atropelamento…saímos todos, parece que uma rapariga foi atropelada por um carro que seguia à nossa frente, não estou muito longe do trabalho e decido continuar a pé, alguém já está a ligar para o INEM, não sou de ficar a ver o espectáculo e parece que a moça até está bem, já a sentaram na beira do passeio.
Mas é ai que volto a sentir aquele estremecimento, uma agitação nas rémiges das asas faz com que me volte e eis que ela surge mais uma vez na minha vida, a menina da cauda, a bela Perséfone, sentada na beira do passeio!
-Estás bem?
-olha quem ele é…já estive melhor, mas acho que foi só o susto.
-as coisa que tu fazes para chamares a minha atenção. Ela ri, enquanto me ajoelho em frente a ela, estamos ali os dois na amena cavaqueira, o trânsito parado, as pessoas permanecem à nossa volta como espectadores de uma dessas peças românticas!

-Meia-leite e uma nata! Ela pede o mesmo para ela. Parece que o destino teima em nos colocar no mesmo caminho!
-parece que sim…mas será que tu me queres no teu caminho?
-ando sem dormir ultimamente, as coisas que me disseste naquele dia não param de ressoar na minha cabeça!
-pode ser falta de massa cinzenta…o espaço vazio faz dessas coisas!
-ui, uma piada…agora sim começo a ficar preocupado, talvez seja melhor ires ao hospital!
-agora a sério, não fiques a matutar nessas coisas, no início é complicado eu sei, mas com o passar do tempo vais voltar ao normal…ou quase normal! Mas não respondeste à minha pergunta…
-eu quero, mas algo me impede de dar o primeiro passo…
-não te preocupes que eu trato disso.
E beija-me, um beijo terno, demorado, de lábio contra lábio, sem ansiedade,o tempo pára e uma sensação de paz invade-me, um vazio preenchido!
-porquê que tens cauda?
-porque me destinaram um anjo!

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