“A ciência desenha a onda, a poesia enche-a de água”
Teixeira de Pascoaes
Atravesso a zona de rebentação sob a prancha, até ao outside onde esperamos pelo inicio da onda, está um dia claro, com pouco vento, e eis que ela surge, uma parede, direcciona para a direita, o surfista mais dentro da vaga tem prioridade, todos os restantes a abandonam, deixo-me ficar no outside, outras surgirão.
Uma nova onda forma-se, não é tão grande, após o drop consigo um botton turning, na volta a onda termina e mergulho, o mar leva-me os pensamentos, as preocupações, limpa-me da alma aquela parte que é perversa, viscosa, maléfica. Volto ao outside, o mar acalma de novo, não tem sido um grande ano, mas o dia está perfeito e compensa por todos os outros maus dias.
Aproxima-se uma onda imensa, um pico triangular que origina um tubo e é minha, estou dentro dela quando subitamente a prancha é arrancada pela onda de choque que se propaga pelo lip espesso. E o tempo pára quando sou arremessado contra uma parede de água, atravesso por completo a curvatura do lip antes de cair na areia exposta onde a onda teve a delicadeza de escoar a água. Suporto todo o peso do corpo sobre o braço e a onda enrola-me e sinto um puxão na leach que se solta do tornozelo.
E por momentos sinto o vazio, estou no vórtice do remoinho, mas tudo parece rodar em câmara lenta, e ela está à minha frente, metade mulher, metade beluga, branca até nos lábios, com cabelos de algas onde se prendem mexilhões e pequenos ouriços, e os olhos transmutando entre um verde e um castanho, grandes, reflectem a pouca luz que atravessa a profundidade. Beija-me, um beijo frio de morte e dentro da minha cabeça consigo ouvi-la cantar: ainda não está na tua hora, tubarão lindo!
Sinto uma pontada forte que se inicia na omoplata e atravessa até ao antebraço,e vejo a clara luz da manhã e o céu e lanço-me fora de água, bebendo o ar em golfadas.
De orgulho e asa ferida, sou rodeado por perguntas, se estou bem, se tenho dores, deixaram de me ver por uns instantes, pensaram o pior, e a mim só me ocorre perguntar pela prancha… ao que respondem apontando para a praia: uma sereia encontrou-a, és cá um sortudo! E lá está ela, sem a cauda de beluga e cabelos de alga, de olhar doce e voz meiga, que pergunta: estás bem Tub?