terça-feira, 26 de outubro de 2010

beluga

“A ciência desenha a onda, a poesia enche-a de água”
Teixeira de Pascoaes

Raros os raios de sol que se revelam no céu da madrugada. A praia deserta acorda fria, selvagem, uma beach break aberta ao swell na protecção de um paredão. Descemos a arriba até à praia e encara-se o mar com profunda deferência, cada onda prestes a ser surfada emite um chamamento, e uma outra onda de adrenalina invade os sentidos à medida que se entra no mar.
Atravesso a zona de rebentação sob a prancha, até ao outside onde esperamos pelo inicio da onda, está um dia claro, com pouco vento, e eis que ela surge, uma parede, direcciona para a direita, o surfista mais dentro da vaga tem prioridade, todos os restantes a abandonam, deixo-me ficar no outside, outras surgirão.
Uma nova onda forma-se, não é tão grande, após o drop consigo um botton turning, na volta a onda termina e mergulho, o mar leva-me os pensamentos, as preocupações, limpa-me da alma aquela parte que é perversa, viscosa, maléfica. Volto ao outside, o mar acalma de novo, não tem sido um grande ano, mas o dia está perfeito e compensa por todos os outros maus dias.
Aproxima-se uma onda imensa, um pico triangular que origina um tubo e é minha, estou dentro dela quando subitamente a prancha é arrancada pela onda de choque que se propaga pelo lip espesso. E o tempo pára quando sou arremessado contra uma parede de água, atravesso por completo a curvatura do lip antes de cair na areia exposta onde a onda teve a delicadeza de escoar a água. Suporto todo o peso do corpo sobre o braço e a onda enrola-me e sinto um puxão na leach que se solta do tornozelo.
E por momentos sinto o vazio, estou no vórtice do remoinho, mas tudo parece rodar em câmara lenta, e ela está à minha frente, metade mulher, metade beluga, branca até nos lábios, com cabelos de algas onde se prendem mexilhões e pequenos ouriços, e os olhos transmutando entre um verde e um castanho, grandes, reflectem a pouca luz que atravessa a profundidade. Beija-me, um beijo frio de morte e dentro da minha cabeça consigo ouvi-la cantar: ainda não está na tua hora, tubarão lindo!
Sinto uma pontada forte que se inicia na omoplata e atravessa até ao antebraço,e vejo a clara luz da manhã e o céu e lanço-me fora de água, bebendo o ar em golfadas.
De orgulho e asa ferida, sou rodeado por perguntas, se estou bem, se tenho dores, deixaram de me ver por uns instantes, pensaram o pior, e a mim só me ocorre perguntar pela prancha… ao que respondem apontando para a praia: uma sereia encontrou-a, és cá um sortudo! E lá está ela, sem a cauda de beluga e cabelos de alga, de olhar doce e voz meiga, que pergunta: estás bem Tub?

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

ócio

“Como ao bem ocupado não há virtude que lhe falte, ao ocioso não há vício que não o acompanhe “ Mateo Alemán

Admito que às vezes sou um ocioso compulsivo! Não sendo o meu único pecado, é no entanto um dos que mais prezo. Dias de completa ociosidade, a beleza do dolce far niente!
Domingo passado foi um desses dias de pura preguiça, em que limito o gasto energético a actividades meramente biológicas e higiénicas, sim que mesmo não fazendo nada ou quase nada, não dispenso um bom duche. Basicamente durmo o máximo de horas possíveis, compensado o saldo negativo que levo da semana, tomo um banho demorado, quase um quarto de hora só a tirar remelas, permito-me não desfazer a barba, faço um farto pequeno-almoço e escapo ao almoço. Saboreio lentamente enquanto leio o que restou do expresso comprado na manha de sábado, aproveito a mesa da sala para abrir o jornal mal iluminado, pela luz do fim da manha dum domingo cinzento.
Não lavo a loiça, hoje não que ócio é sinónimo de descanso, vagar, lazer. Enrosco-me no sofá, o tempo arrefeceu e pede uma manta aberta sobre mim, adormeço de livro aberto. Alguns raios de sol vieram anunciar um fim de tarde mais animado, impulsionado ou não por essa proclamação, faço tocar na aparelhagem a divina Ella Fitzgerald interpretando a obra de Gershwin. E preparo o jantar, sem pressa, que essa já se sabe é inimiga da perfeição! Minutos de contemplação para o interior de um frigorífico quase cheio de nada, penso na lista de compras que deixei a meio.
Lanço os cogumelos portobello em água morna enquanto corto o peito de frango em fatias finas, deixo a marinar um pouco em molho de soja e piri-piri, não tenho gengibre. Pico meia cebola e um alho para dentro do wook, um refogado perfumado para cozinhar o frango. Corto o alho francês e os cogumelos em fatias e adiciono à carne que está quase pronta, ervilhas congeladas lá para dentro e por último escorro uma lata de rebentos de soja, misturando tudo com mais um pouco de molho de soja et voilà, é quase um chop suey de frango!
Sento-me no parapeito da janela, contemplo o fim de um dia perfeito, enquanto travo uma pequena batalha com os pauzinhos e o resto dos rebentos de soja que teimam não se deixar apanhar, agarrados com unhas e dentes à porcelana da taça. Não lavo a loiça. A Ella à muito que se calou, volto ao sofá e ao conforto da manta, procuro a inspiração e afago-lhe o pelo! Escrevo umas linhas até sentir de novo o sono.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Thea Filopator

Há quem diga que tudo começou numa sexta-feira ao fim do dia ou então ao inicio da noite, é difícil ter a certeza em histórias como esta, mas lembro-me bem, como se fosse hoje mesmo, da troca de olhares e ainda me lembro melhor, do sabor dos seus beijos e da primeira vez que os provei…mas cada coisa a seu tempo.
Era uma sexta-feira como tantas outras, havia Jazz no café Progresso. A noite era fresca de Outono, acabado de entrar pelo grande portal das estações, era um tempo estranho entre a inevitável chuva e frio e ao mesmo tempo a difícil despedida do Verão, que teimava em ficar mais uns dias.
Num grupo numeroso heterogéneo, ruidoso num espaço pequeno, cumprimentei conhecidos e desconhecidos, usando uma saudação mais ou menos calorosa de acordo com os padrões estabelecidos pela ética e bons costumes. Foi quando a vi, naquele canto, impossível de alcançar. Os nossos olhares cruzavam-se numa intensidade acima do normal entre pessoas que eram completamente estranhas, e pelo facto de sermos completamente estranhos, e de uma mesa cheia no nosso meio, levava-me a cumprimenta-la estendendo a mão na sua direcção, na impossibilidade lhe sentir a face na minha, no movimento que fazemos instintivamente na encenação de um beijo.
Conseguia ver uma certa desilusão no seu olhar enquanto media a minha mão a menos de um metro da sua cara.
“És um fraco César, tens medo dela e daqueles olhos fundos em forma de amêndoas, se fosses um homem corajoso, saltavas por cima da mesa que vos separa, e em vez de um aperto de mão podias dar-lhe um beijo” Censurava o contrabaixo em notas tristes.
Ela agarrou-me a mão pela ponta dos dedos e beijou o dorso dizendo na voz mais suave e certa do mundo: Cleópatra, muito prazer!
Senti um rubor que trepava pelo pescoço até às faces, nascido no peito, numa cavidade torácica vazia, mas onde começava a pulsar algo, nas artérias e veias rasgadas, pendentes que outrora alimentaram um órgão destroçado!
Perdia o dom da palavra, acontecia sempre nos momentos em que mais necessitava de uma frase inspirada. Sentei-me não muito longe sem abrir a boca, atordoado pelo som forte e baixo do contrabaixo, à mistura com o pulsar interior e tudo entoava pelo soalho antigo de madeira, fazendo o chão tremer por baixo dos pés. E é então que ela me chama, duas vezes diz o meu nome, aquela voz difícil de esquecer, e eu volto a cabeça na direcção daqueles olhos negros profundos, onde sei que me vou afogar… 
E eu voo, como uma Sphingidae nocturna que expande as poderosas asas carregadas de pó dourado e atravessa a sala em direcção a ela, em direcção à Luz.
Vem sentar-te ao meu lado, temos tanto para conversar. Com relativo êxito correu com Marco António, o lugar ao seu lado está vazio deixando a César o que é de César! Diz com um sorriso, numa boca bem traçada com lábios finamente cinzelados. Como fica bem esta boca nesse seu nariz perfeito.
Ao fim de mais de dois mil anos as forças do destino voltaram a cruzar os nossos caminhos. Digo, inspirado pela sua beleza e encontrando algures nos bolsos das calças o dom da palavra que julguei ter perdido.
Tu lembras-te? Pergunta, sem nunca desviar o olhar.
Claro que sim, era um dia de Inverno morno, tinha acabado de chegar ao Egipto quando recebi o teu presente.
E que mais te recordas tu?
Lembro-me de te ver deslumbrante, muito jovem e imensamente bela, desenrolada de um tapete! Cheiravas a rosas…
É curioso que digas isso, também me lembro bem do teu cheiro, a águas quentes termais e folhas de loureiro… agora cheiras a papel, livros e tinta de encadernação!
Não tenho tido muito tempo para banhos demorados em termas, e o loureiro saiu de moda em meados do nascimento de Cristo.
E tu, continuas a cheiras a pétalas de rosa, lavanda, leite morno e mel? Enquanto lhe pego na mão e cheiro intensamente a palma, fechando os olhos e restantes sentidos para que nenhum deles engane o olfacto.
Cheiras a barro, a terra molhada e algo mais … será cogumelos? Ela solta uma gargalhada quase cerrando os olhos de amêndoa. Lá se foi o encanto dos banhos de leite regados a mel e morangos!
Saímos para a noite, despertos como crianças. Havia tanta coisa para contar, o entusiasmo fazia tropeçar em histórias, factos, lendas, batalhas perdidas e vitórias alcançadas. Sentados nas escadas da igreja do Carmo, viajamos pelo tempo a Karnak, com as suas esfinges de pedra ao longo do eixo principal, guardando o templo na orla do deserto. Beijamo-nos sob a luz das estrelas, as mesmas de há dois mil anos, primeiro um beijo tímido de lábio projectado em lábio, onde se absorve o aroma a desejo e depois a língua, e com ela o sentido do paladar, e o sabor de um amor que vem lá do fundo do coração.