sexta-feira, 24 de setembro de 2010

espremido

Estou espremido, como uma laranja que depois de golpeada na sua metade, lhe vê extraído num tormentoso e rotativo espremedor de citrinos, gota a gota, o seu sumo precioso.
Removido o mesocarpo suculento, só resta o espaço em branco que fica sob a linha azul do meu caderno.
Estou espremido, de conteúdo, de ideias... vou fazer o jantar!

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

constelações

Ao olharmos as estrelas é como se observássemos um passado distante; na realidade, o que vemos não é o que são actualmente, mas como eram há centenas de anos. A luz que agora nos chega na maior parte delas começou a sua longa viagem muito antes do nosso nascimento e, no caso das estrelas mais distantes, muito antes da aparição do Homem sobre a Terra.
Olho agora para o passado, no interior dessa luz, há centenas de anos batia compassadamente um coração no meu peito. Nesse tempo era tão cego como Édipo, ele por vergonha de não ter reconhecido a própria mãe, eu pelo amor incondicional a uma mulher!
Com as pontas dos dedos tacteava ao longo da sua pele, semelhante a um mármore frio, perfeitamente liso, salvo pequenos pontos salientes que fazia unir num traço imaginário. Pégasus, soprava-lhe ao ouvido, enquanto ligava quatro sinais por baixo do peito, que formavam um quadrado, é o cavalo alado, os outros três sinais seguintes a garganta e a cabeça. Voltava o rosto para mim, deixando-se cair lânguida sobre o meu braço. Sentia o relevo acentuado de outros três sinais bem próximos na curva do pescoço, cinturão de Órion, murmurava docemente, formado pelas gigantes azuis Alnitak, Alnilam e Mintaka. Um pouco mais acima as estrelas Betelgeuse e Bellatrix completavam a cabeça do caçador Órion, amante de Artemis, trajado com um cinto, uma pele de leão e armado de uma espada. Aninhava-se em mim, os meus dedos percorriam a extensão do seu dorso, sentido a cordilheira de vértebras alinhadas, em busca de uma constelação. Cinco pontos formando uma espécie de W ou M, Cassiopeia. Sentia o ar quente libertar-se dos seus pulmões, quase que adormecida, pedia que continua-se e unindo as estrelas da constelação, falava da figura formada pelas estrelas próximas da constelação de Cepheus, que lembravam uma figura humana sentada num trono de cabeça para baixo. Os gregos associavam essa representação à punição de um crime severo, relacionando-o com o mito de Cassiopeia, a vaidosa rainha da Etiópia! Fechada no sono, respirava tranquilamente, resguardada na concha que era o meu corpo, enquanto eu desfazia os caracóis que lhe caiam pelos ombros. A cegueira provocava uma insónia doentia de contemplar ao tacto toda a sua beleza. Por fim beijava os lábios frios que libertavam um pedido, sonha comigo!

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Danae no braço do sofá

“Era o processo que Tomas usava para transformar uma conversa anódina numa situação erótica: fazia-o não com carícias, toques, elogios ou súplicas, mas com uma ordem…” Abeira-se silenciosamente e senta-se no braço oposto do sofá. “…que proferia bruscamente, de improviso, com uma voz suave, embora enérgica e autoritária, e à distância. Nesse momento, nunca tocava na mulher a quem se dirigia. Mesmo à própria Tereza dizia, exactamente no mesmo tom: “Despe-te!” e embora falasse com suavidade…” Não desvio a atenção do livro, trinca ruidosamente uma maçã na tentativa de me provocar. “…embora sussurrasse, tratava-se realmente de uma ordem. Só por lhe obedecer, ela ficava logo excitada.” Segunda dentada na maçã, capta definitivamente a minha atenção, fica linda naquele camisolão largo, com as pernas despidas, sentada no que parece um trono, mas é somente o braço do meu sofá. Largo a insustentável leveza sem o marcar, estico-me até alcançar o seu tornozelo e com força faço Danae cair do pedestal. Provocadora, abre as pernas, recebendo-me como teria recebido Zeus transmutado numa chuva de ouro. Lábios perfumados a maça verde, doces e húmidos, que perdição!

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

de volta ao meu sofá

Apesar de ter passado uma bela semana de férias, em que mais não fiz do que espreguiçar na praia, ingerir litros de cerveja e treinar o meu castelhano, inglês, alemão, francês...com a devida quantidade de álcool até sueco e romeno julguei praticar... eu confesso que já tinha saudades do meu sofá!
eu penso que já disse algures que gosto muito do meu sofá, e gosto mesmo, gosto tanto que a primeira coisa que fiz quando regressei a casa foi abraça-lo, como um velho amigo que não vemos hà muito tempo, um abraço longo, caloroso, afectuoso...é um bom sofá, não haja dúvida, respeitável pela sua idade, confortável pelo seu conteúdo, um espectador de momentos íntimos, ou um interveniente em curiosos diálogos que travamos, sobre um ou outro assunto, de sofás ou de pessoas!

terça-feira, 14 de setembro de 2010

azar

Do despertador soltou-se em volume elevado uma cantoria estridente: “A cabra da tua tia que berrava quando fugia!” Não sei o que aconteceu ao António Peres Metello e à sua crónica sobre as forças e as fraquezas da Economia!
Começo bem a semana…ao atar as sapatilhas “tudo estrelas”, um dos atacadores rebenta e fica a balançar do punho cerrado. Lembro-me de ter sonhado com um árabe enrugado de olhos claros e pele escura que repetia “azzahar”…já te entendi, sucesso infausto, desgraça, má sorte ou sorte macaca!
Não tenho tempo para trocar o atacador, por isso troco de sapatilhas. Que dia é hoje afinal? Parece que é 13! Lá vai o autocarro, dou uma corrida e consigo entrar, sorrio à sorte madrasta, afinal nem tudo corre mal até o autocarro virar à esquerda em vez de seguir em frente…Merda, número errado, já vou chegar atrasado! Sem tempo para o café, tenho um inventário pela frente, prateleiras e prateleiras para passar a pente fino! “Que urucubaca!”, grita uma colega, quando o meu tabuleiro com o almoço voa vinte metros e aterra em cima de um fiscal das finanças! Que o quê? Cafife, azar…urucubaca vem de urubu, ave de mau agouro e cumbaca, um peixe azarento que se pescado estraga o dia do pescador. Para a pessoa se livrar da urucubaca nada como dar uma pancada na madeira com as costas dos dedos da mão direita. As mesas são de plástico!

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

corpo lindo

Inicio de tarde quente, estou à espera do 602, alheio a tudo, nem dou pelos minutos que passam por mim e me acenam, então pá, por aqui sem nada para fazer?
Os óculos escuros escondem que não estou bem acordado, onde havia um rato no estômago, vive agora uma sequiosa ratazana, espera lá, deixei de sentir a rede neuronal do lado direito!
Sem aviso prévio uma rapariga aproxima-se e pergunta: tens isqueiro? Vomito um: Não, a torto e a direito! Ela vira costa e desaparece, nem sequer atira um último obrigado!
Tanta coisa para dizer….e só me ocorria naquele momento a parvoíce de lhe responder: “Não, mas tenho um corpo lindo!”

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

tempo quente

A primeira molécula subiu o tubo enrolado, cercado de capilares sanguíneos, até ao poro ocluso da epiderme. A sua constituição era principalmente água, além de outras substâncias como ureia, ácido úrico e sal. Em cerca de dois milhões de outras glândulas o mesmo processo contínuo sucedia, independentes umas das outras, as primeiras moléculas subiam.
O poro abriu-se como cortinas de uma peça…dá-se inicio ao prelúdio…a primeira das primeiras moléculas libertou-se, mas não completamente, atrás dela outras seguiam no seu encalço, acumulando-se em redor do interstício, formam uma multidão de minúsculas gotículas, delicadas cúpulas líquidas, bastiões entre as duas fases, a fluida e a gasosa!
Centenas, biliões amontoavam-se, amotinavam-se, o peso e o volume deste agregado já há muito que ultrapassava os limites da física e então deixou de ser cativa do poro que a prendia. Escorreu vagarosamente, contornando as rugas da testa destacadas… não sei se pelo cerrar do olhar ou então pela idade já avançada… seguiu uma senda e ladeou o rosto até à linha do maxilar, ganha velocidade à medida que outras gotas se juntam a ela e o seu tamanho duplica. E é então que por breves segundos, vê-se suspensa na barba de um dia…e cai.