segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

abraços

Na embalagem diz assim:
DDR para um adulto sem uma grande barriga, é de 4 abraços por dia!

Aconteceu-me um destes dias, enquanto descia a rua de Santa Catarina meditando com os meus botões, sobre as coisas que são coisas da vida, quando um enorme cartaz de letras a negro, rompia o discorrer do meu caminho. Abraços Grátis. E uma rapariga de olhar meigo e braços abertos surgia, oferecendo um abraço, que aceitei com agrado…e depois mais um e ainda outro e lá ficavam para trás a distribuir milhares de abraços pela rua acima!
No dia seguinte, enquanto esperava um amigo na zona de desembarque do aeroporto, contemplava a imagem de pinguins apinhados e a chegada de estranhos empurrando carrinhos, procurando uma cara familiar no meio da multidão, e o desenrolar de conversas e abraços com quem os esperava.
E sem aviso fui abraçado, um abraço forte sem cartaz a anunciar, dois braços em volta de mim, estranhos mas agradáveis, de graça, e logo um vaiar de “No! No! No!”, faziam-na deslaçar, corada pelo engano de abraçar um desconhecido!

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

coturnos

Em jeito de celebração pela quinquagésima publicação no meu outro blog, pensei em escrever sobre um tema mais profundo, sobre algo sublime, distinto, exclusivo.
Espenujei que é o mesmo que dizer que sacudi as penas, e comecei a rabiscar possíveis temas no talão do supermercado, o primeiro que surgia era efectivamente as mulheres:
Il y a une femme dans toute les affaires, aussitôt qu'on me fait un rapport, je dis: 'Cherchez la femme'.
E é nesse momento que sofro de uma apreensão, geralmente são inesperadas, do significado de algo profundo. Como posso escrever sobre elas, afinal o que sei sobre as mulheres que preencha vinte linhas do meu caderno?! Sentindo que vivia na ignorância passei ao segundo tema: Peúgas!

Já estou mesmo a ver alguns olhares de soslaio (adoro esta palavra, mil vezes mais perfeita que aquela de esguelha), pensando, foi desta que ele perdeu o juízo, desta feita no supermercado!

Um coturno só é valorizado quando se é atormentado durante um dia inteiro, por um par de peúgas que perdendo a resistência, teimam em descair desde o artelho até ao dedo grande do pé!
Mas há mais...todos sabemos que as meias transportam uma simbologia própria, por isso se colocam junto à lareira na esperança que um presente seja deixado, por um desconhecido de barbas brancas... ou então por uma criança envolvida num cueiro.

Isto tudo para chegar até aqui: Eu recebia sempre meias pelo Natal, e passado pouco menos de um mês, voltava a receber meias... sofria do trauma do embrulho que aparenta ter MEIAS!
Até compreender, que o importante não eram as meias, era quem as oferecia. E que um dia, aquelas mãos já enrugadas e trémulas da minha avó, não estariam presentes na entrega do característico embrulho que continha, o que eu já sabia serem meias!
Mas há mais... a minha avó este ano resolveu surpreender-me, já comprou dois pares de "coturnos" e umas "trusses", para me oferecer no Natal... foi um passarinho que me disse!

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Menina do Mar

Embora tivesse nascido praticamente dentro de uma concha, esta é a história de uma Menina que vivia longe do Mar. A praia de areias escuras e águas calmas mais próxima, ficava precisamente a 416 km de distância da cidade onde vivia, viajando sempre para sul, seguindo as correntes quentes que varrem os desertos africanos.
Mas a menina não seguia o Siroco, ou Scirocco como se diz em Itália, ou o vento quente, asfixiante e empoeirado que sopra na região do Mediterrâneo, a menina não descalçava as sandálias para sentir a areia entre os dedos dos pés, nem cheirava a espuma esvoaçante lançada da vaga e o salitre na pele seca. Ela simplesmente esperava pela noite, como se espera pela maré, e adormecia num sono profundo, tão profundo como as fossas a leste das ilhas Marianas. E então sonhava com o Mar, com o azul quase negro das profundezas, onde a luz do Sol mal consegue entrar. O ondular de florestas de algas verdes e de kelps-gigantes, em perfeita sintonia com o canto das baleias, ou então nadando perto dos fundos arenosos cobertos de magníficos corais, nas águas claras e quentes, onde milhares de espécies de peixes coloridos se agitam.

Noite após noite, maré após maré, a Menina voltava ao Mar, percorrendo os oceanos de lés-a-lés, seguindo as correntes marítimas, fluxos ordenados ou não, dependentes da inércia da rotação do planeta, dos ventos e da diferença de densidade, correntes quentes ou frias, sem nunca largar a barbatana dorsal, de um imenso tubarão prateado.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

juizo

Deitados lado a lado na cama, olhos nos olhos, a sua face repousa sobre as mãos unidas, enquanto o meu braço combinado em acordo secreto com a mão, suportam a minha cabeça. Afasto um cabelo que teimosamente caiu sobre o seu belo nariz de Cleópatra, prendendo-o atrás da orelha, simétrico aos restantes. O funcionário do ikea aproxima-se e diz. Vão me desculpar mas não podem…estar ai deitados…assim! Assim como? Interrogo, voltando a cabeça no sentido da voz trémula. Assim como se estivessem em casa. Respondeu o rapaz de camiseta amarela, com a voz ainda a tremer mais. Ele tem razão. Diz ela, enquanto me puxa da cama pela mão. O funcionário vira costas, mais a medo do que convencido que desisti de experimentar a cama com dossel, e os mirones dispersam, voltando de novo a sua atenção para as jarras Blomster. Sussurro-lhe ao ouvido. Podíamos tirar a roupa e ir para debaixo dos lençóis! Suspira profundamente. Anda César, vamos procurar o teu juízo!

terça-feira, 26 de outubro de 2010

beluga

“A ciência desenha a onda, a poesia enche-a de água”
Teixeira de Pascoaes

Raros os raios de sol que se revelam no céu da madrugada. A praia deserta acorda fria, selvagem, uma beach break aberta ao swell na protecção de um paredão. Descemos a arriba até à praia e encara-se o mar com profunda deferência, cada onda prestes a ser surfada emite um chamamento, e uma outra onda de adrenalina invade os sentidos à medida que se entra no mar.
Atravesso a zona de rebentação sob a prancha, até ao outside onde esperamos pelo inicio da onda, está um dia claro, com pouco vento, e eis que ela surge, uma parede, direcciona para a direita, o surfista mais dentro da vaga tem prioridade, todos os restantes a abandonam, deixo-me ficar no outside, outras surgirão.
Uma nova onda forma-se, não é tão grande, após o drop consigo um botton turning, na volta a onda termina e mergulho, o mar leva-me os pensamentos, as preocupações, limpa-me da alma aquela parte que é perversa, viscosa, maléfica. Volto ao outside, o mar acalma de novo, não tem sido um grande ano, mas o dia está perfeito e compensa por todos os outros maus dias.
Aproxima-se uma onda imensa, um pico triangular que origina um tubo e é minha, estou dentro dela quando subitamente a prancha é arrancada pela onda de choque que se propaga pelo lip espesso. E o tempo pára quando sou arremessado contra uma parede de água, atravesso por completo a curvatura do lip antes de cair na areia exposta onde a onda teve a delicadeza de escoar a água. Suporto todo o peso do corpo sobre o braço e a onda enrola-me e sinto um puxão na leach que se solta do tornozelo.
E por momentos sinto o vazio, estou no vórtice do remoinho, mas tudo parece rodar em câmara lenta, e ela está à minha frente, metade mulher, metade beluga, branca até nos lábios, com cabelos de algas onde se prendem mexilhões e pequenos ouriços, e os olhos transmutando entre um verde e um castanho, grandes, reflectem a pouca luz que atravessa a profundidade. Beija-me, um beijo frio de morte e dentro da minha cabeça consigo ouvi-la cantar: ainda não está na tua hora, tubarão lindo!
Sinto uma pontada forte que se inicia na omoplata e atravessa até ao antebraço,e vejo a clara luz da manhã e o céu e lanço-me fora de água, bebendo o ar em golfadas.
De orgulho e asa ferida, sou rodeado por perguntas, se estou bem, se tenho dores, deixaram de me ver por uns instantes, pensaram o pior, e a mim só me ocorre perguntar pela prancha… ao que respondem apontando para a praia: uma sereia encontrou-a, és cá um sortudo! E lá está ela, sem a cauda de beluga e cabelos de alga, de olhar doce e voz meiga, que pergunta: estás bem Tub?

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

ócio

“Como ao bem ocupado não há virtude que lhe falte, ao ocioso não há vício que não o acompanhe “ Mateo Alemán

Admito que às vezes sou um ocioso compulsivo! Não sendo o meu único pecado, é no entanto um dos que mais prezo. Dias de completa ociosidade, a beleza do dolce far niente!
Domingo passado foi um desses dias de pura preguiça, em que limito o gasto energético a actividades meramente biológicas e higiénicas, sim que mesmo não fazendo nada ou quase nada, não dispenso um bom duche. Basicamente durmo o máximo de horas possíveis, compensado o saldo negativo que levo da semana, tomo um banho demorado, quase um quarto de hora só a tirar remelas, permito-me não desfazer a barba, faço um farto pequeno-almoço e escapo ao almoço. Saboreio lentamente enquanto leio o que restou do expresso comprado na manha de sábado, aproveito a mesa da sala para abrir o jornal mal iluminado, pela luz do fim da manha dum domingo cinzento.
Não lavo a loiça, hoje não que ócio é sinónimo de descanso, vagar, lazer. Enrosco-me no sofá, o tempo arrefeceu e pede uma manta aberta sobre mim, adormeço de livro aberto. Alguns raios de sol vieram anunciar um fim de tarde mais animado, impulsionado ou não por essa proclamação, faço tocar na aparelhagem a divina Ella Fitzgerald interpretando a obra de Gershwin. E preparo o jantar, sem pressa, que essa já se sabe é inimiga da perfeição! Minutos de contemplação para o interior de um frigorífico quase cheio de nada, penso na lista de compras que deixei a meio.
Lanço os cogumelos portobello em água morna enquanto corto o peito de frango em fatias finas, deixo a marinar um pouco em molho de soja e piri-piri, não tenho gengibre. Pico meia cebola e um alho para dentro do wook, um refogado perfumado para cozinhar o frango. Corto o alho francês e os cogumelos em fatias e adiciono à carne que está quase pronta, ervilhas congeladas lá para dentro e por último escorro uma lata de rebentos de soja, misturando tudo com mais um pouco de molho de soja et voilà, é quase um chop suey de frango!
Sento-me no parapeito da janela, contemplo o fim de um dia perfeito, enquanto travo uma pequena batalha com os pauzinhos e o resto dos rebentos de soja que teimam não se deixar apanhar, agarrados com unhas e dentes à porcelana da taça. Não lavo a loiça. A Ella à muito que se calou, volto ao sofá e ao conforto da manta, procuro a inspiração e afago-lhe o pelo! Escrevo umas linhas até sentir de novo o sono.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Thea Filopator

Há quem diga que tudo começou numa sexta-feira ao fim do dia ou então ao inicio da noite, é difícil ter a certeza em histórias como esta, mas lembro-me bem, como se fosse hoje mesmo, da troca de olhares e ainda me lembro melhor, do sabor dos seus beijos e da primeira vez que os provei…mas cada coisa a seu tempo.
Era uma sexta-feira como tantas outras, havia Jazz no café Progresso. A noite era fresca de Outono, acabado de entrar pelo grande portal das estações, era um tempo estranho entre a inevitável chuva e frio e ao mesmo tempo a difícil despedida do Verão, que teimava em ficar mais uns dias.
Num grupo numeroso heterogéneo, ruidoso num espaço pequeno, cumprimentei conhecidos e desconhecidos, usando uma saudação mais ou menos calorosa de acordo com os padrões estabelecidos pela ética e bons costumes. Foi quando a vi, naquele canto, impossível de alcançar. Os nossos olhares cruzavam-se numa intensidade acima do normal entre pessoas que eram completamente estranhas, e pelo facto de sermos completamente estranhos, e de uma mesa cheia no nosso meio, levava-me a cumprimenta-la estendendo a mão na sua direcção, na impossibilidade lhe sentir a face na minha, no movimento que fazemos instintivamente na encenação de um beijo.
Conseguia ver uma certa desilusão no seu olhar enquanto media a minha mão a menos de um metro da sua cara.
“És um fraco César, tens medo dela e daqueles olhos fundos em forma de amêndoas, se fosses um homem corajoso, saltavas por cima da mesa que vos separa, e em vez de um aperto de mão podias dar-lhe um beijo” Censurava o contrabaixo em notas tristes.
Ela agarrou-me a mão pela ponta dos dedos e beijou o dorso dizendo na voz mais suave e certa do mundo: Cleópatra, muito prazer!
Senti um rubor que trepava pelo pescoço até às faces, nascido no peito, numa cavidade torácica vazia, mas onde começava a pulsar algo, nas artérias e veias rasgadas, pendentes que outrora alimentaram um órgão destroçado!
Perdia o dom da palavra, acontecia sempre nos momentos em que mais necessitava de uma frase inspirada. Sentei-me não muito longe sem abrir a boca, atordoado pelo som forte e baixo do contrabaixo, à mistura com o pulsar interior e tudo entoava pelo soalho antigo de madeira, fazendo o chão tremer por baixo dos pés. E é então que ela me chama, duas vezes diz o meu nome, aquela voz difícil de esquecer, e eu volto a cabeça na direcção daqueles olhos negros profundos, onde sei que me vou afogar… 
E eu voo, como uma Sphingidae nocturna que expande as poderosas asas carregadas de pó dourado e atravessa a sala em direcção a ela, em direcção à Luz.
Vem sentar-te ao meu lado, temos tanto para conversar. Com relativo êxito correu com Marco António, o lugar ao seu lado está vazio deixando a César o que é de César! Diz com um sorriso, numa boca bem traçada com lábios finamente cinzelados. Como fica bem esta boca nesse seu nariz perfeito.
Ao fim de mais de dois mil anos as forças do destino voltaram a cruzar os nossos caminhos. Digo, inspirado pela sua beleza e encontrando algures nos bolsos das calças o dom da palavra que julguei ter perdido.
Tu lembras-te? Pergunta, sem nunca desviar o olhar.
Claro que sim, era um dia de Inverno morno, tinha acabado de chegar ao Egipto quando recebi o teu presente.
E que mais te recordas tu?
Lembro-me de te ver deslumbrante, muito jovem e imensamente bela, desenrolada de um tapete! Cheiravas a rosas…
É curioso que digas isso, também me lembro bem do teu cheiro, a águas quentes termais e folhas de loureiro… agora cheiras a papel, livros e tinta de encadernação!
Não tenho tido muito tempo para banhos demorados em termas, e o loureiro saiu de moda em meados do nascimento de Cristo.
E tu, continuas a cheiras a pétalas de rosa, lavanda, leite morno e mel? Enquanto lhe pego na mão e cheiro intensamente a palma, fechando os olhos e restantes sentidos para que nenhum deles engane o olfacto.
Cheiras a barro, a terra molhada e algo mais … será cogumelos? Ela solta uma gargalhada quase cerrando os olhos de amêndoa. Lá se foi o encanto dos banhos de leite regados a mel e morangos!
Saímos para a noite, despertos como crianças. Havia tanta coisa para contar, o entusiasmo fazia tropeçar em histórias, factos, lendas, batalhas perdidas e vitórias alcançadas. Sentados nas escadas da igreja do Carmo, viajamos pelo tempo a Karnak, com as suas esfinges de pedra ao longo do eixo principal, guardando o templo na orla do deserto. Beijamo-nos sob a luz das estrelas, as mesmas de há dois mil anos, primeiro um beijo tímido de lábio projectado em lábio, onde se absorve o aroma a desejo e depois a língua, e com ela o sentido do paladar, e o sabor de um amor que vem lá do fundo do coração.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

espremido

Estou espremido, como uma laranja que depois de golpeada na sua metade, lhe vê extraído num tormentoso e rotativo espremedor de citrinos, gota a gota, o seu sumo precioso.
Removido o mesocarpo suculento, só resta o espaço em branco que fica sob a linha azul do meu caderno.
Estou espremido, de conteúdo, de ideias... vou fazer o jantar!

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

constelações

Ao olharmos as estrelas é como se observássemos um passado distante; na realidade, o que vemos não é o que são actualmente, mas como eram há centenas de anos. A luz que agora nos chega na maior parte delas começou a sua longa viagem muito antes do nosso nascimento e, no caso das estrelas mais distantes, muito antes da aparição do Homem sobre a Terra.
Olho agora para o passado, no interior dessa luz, há centenas de anos batia compassadamente um coração no meu peito. Nesse tempo era tão cego como Édipo, ele por vergonha de não ter reconhecido a própria mãe, eu pelo amor incondicional a uma mulher!
Com as pontas dos dedos tacteava ao longo da sua pele, semelhante a um mármore frio, perfeitamente liso, salvo pequenos pontos salientes que fazia unir num traço imaginário. Pégasus, soprava-lhe ao ouvido, enquanto ligava quatro sinais por baixo do peito, que formavam um quadrado, é o cavalo alado, os outros três sinais seguintes a garganta e a cabeça. Voltava o rosto para mim, deixando-se cair lânguida sobre o meu braço. Sentia o relevo acentuado de outros três sinais bem próximos na curva do pescoço, cinturão de Órion, murmurava docemente, formado pelas gigantes azuis Alnitak, Alnilam e Mintaka. Um pouco mais acima as estrelas Betelgeuse e Bellatrix completavam a cabeça do caçador Órion, amante de Artemis, trajado com um cinto, uma pele de leão e armado de uma espada. Aninhava-se em mim, os meus dedos percorriam a extensão do seu dorso, sentido a cordilheira de vértebras alinhadas, em busca de uma constelação. Cinco pontos formando uma espécie de W ou M, Cassiopeia. Sentia o ar quente libertar-se dos seus pulmões, quase que adormecida, pedia que continua-se e unindo as estrelas da constelação, falava da figura formada pelas estrelas próximas da constelação de Cepheus, que lembravam uma figura humana sentada num trono de cabeça para baixo. Os gregos associavam essa representação à punição de um crime severo, relacionando-o com o mito de Cassiopeia, a vaidosa rainha da Etiópia! Fechada no sono, respirava tranquilamente, resguardada na concha que era o meu corpo, enquanto eu desfazia os caracóis que lhe caiam pelos ombros. A cegueira provocava uma insónia doentia de contemplar ao tacto toda a sua beleza. Por fim beijava os lábios frios que libertavam um pedido, sonha comigo!

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Danae no braço do sofá

“Era o processo que Tomas usava para transformar uma conversa anódina numa situação erótica: fazia-o não com carícias, toques, elogios ou súplicas, mas com uma ordem…” Abeira-se silenciosamente e senta-se no braço oposto do sofá. “…que proferia bruscamente, de improviso, com uma voz suave, embora enérgica e autoritária, e à distância. Nesse momento, nunca tocava na mulher a quem se dirigia. Mesmo à própria Tereza dizia, exactamente no mesmo tom: “Despe-te!” e embora falasse com suavidade…” Não desvio a atenção do livro, trinca ruidosamente uma maçã na tentativa de me provocar. “…embora sussurrasse, tratava-se realmente de uma ordem. Só por lhe obedecer, ela ficava logo excitada.” Segunda dentada na maçã, capta definitivamente a minha atenção, fica linda naquele camisolão largo, com as pernas despidas, sentada no que parece um trono, mas é somente o braço do meu sofá. Largo a insustentável leveza sem o marcar, estico-me até alcançar o seu tornozelo e com força faço Danae cair do pedestal. Provocadora, abre as pernas, recebendo-me como teria recebido Zeus transmutado numa chuva de ouro. Lábios perfumados a maça verde, doces e húmidos, que perdição!

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

de volta ao meu sofá

Apesar de ter passado uma bela semana de férias, em que mais não fiz do que espreguiçar na praia, ingerir litros de cerveja e treinar o meu castelhano, inglês, alemão, francês...com a devida quantidade de álcool até sueco e romeno julguei praticar... eu confesso que já tinha saudades do meu sofá!
eu penso que já disse algures que gosto muito do meu sofá, e gosto mesmo, gosto tanto que a primeira coisa que fiz quando regressei a casa foi abraça-lo, como um velho amigo que não vemos hà muito tempo, um abraço longo, caloroso, afectuoso...é um bom sofá, não haja dúvida, respeitável pela sua idade, confortável pelo seu conteúdo, um espectador de momentos íntimos, ou um interveniente em curiosos diálogos que travamos, sobre um ou outro assunto, de sofás ou de pessoas!

terça-feira, 14 de setembro de 2010

azar

Do despertador soltou-se em volume elevado uma cantoria estridente: “A cabra da tua tia que berrava quando fugia!” Não sei o que aconteceu ao António Peres Metello e à sua crónica sobre as forças e as fraquezas da Economia!
Começo bem a semana…ao atar as sapatilhas “tudo estrelas”, um dos atacadores rebenta e fica a balançar do punho cerrado. Lembro-me de ter sonhado com um árabe enrugado de olhos claros e pele escura que repetia “azzahar”…já te entendi, sucesso infausto, desgraça, má sorte ou sorte macaca!
Não tenho tempo para trocar o atacador, por isso troco de sapatilhas. Que dia é hoje afinal? Parece que é 13! Lá vai o autocarro, dou uma corrida e consigo entrar, sorrio à sorte madrasta, afinal nem tudo corre mal até o autocarro virar à esquerda em vez de seguir em frente…Merda, número errado, já vou chegar atrasado! Sem tempo para o café, tenho um inventário pela frente, prateleiras e prateleiras para passar a pente fino! “Que urucubaca!”, grita uma colega, quando o meu tabuleiro com o almoço voa vinte metros e aterra em cima de um fiscal das finanças! Que o quê? Cafife, azar…urucubaca vem de urubu, ave de mau agouro e cumbaca, um peixe azarento que se pescado estraga o dia do pescador. Para a pessoa se livrar da urucubaca nada como dar uma pancada na madeira com as costas dos dedos da mão direita. As mesas são de plástico!

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

corpo lindo

Inicio de tarde quente, estou à espera do 602, alheio a tudo, nem dou pelos minutos que passam por mim e me acenam, então pá, por aqui sem nada para fazer?
Os óculos escuros escondem que não estou bem acordado, onde havia um rato no estômago, vive agora uma sequiosa ratazana, espera lá, deixei de sentir a rede neuronal do lado direito!
Sem aviso prévio uma rapariga aproxima-se e pergunta: tens isqueiro? Vomito um: Não, a torto e a direito! Ela vira costa e desaparece, nem sequer atira um último obrigado!
Tanta coisa para dizer….e só me ocorria naquele momento a parvoíce de lhe responder: “Não, mas tenho um corpo lindo!”

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

tempo quente

A primeira molécula subiu o tubo enrolado, cercado de capilares sanguíneos, até ao poro ocluso da epiderme. A sua constituição era principalmente água, além de outras substâncias como ureia, ácido úrico e sal. Em cerca de dois milhões de outras glândulas o mesmo processo contínuo sucedia, independentes umas das outras, as primeiras moléculas subiam.
O poro abriu-se como cortinas de uma peça…dá-se inicio ao prelúdio…a primeira das primeiras moléculas libertou-se, mas não completamente, atrás dela outras seguiam no seu encalço, acumulando-se em redor do interstício, formam uma multidão de minúsculas gotículas, delicadas cúpulas líquidas, bastiões entre as duas fases, a fluida e a gasosa!
Centenas, biliões amontoavam-se, amotinavam-se, o peso e o volume deste agregado já há muito que ultrapassava os limites da física e então deixou de ser cativa do poro que a prendia. Escorreu vagarosamente, contornando as rugas da testa destacadas… não sei se pelo cerrar do olhar ou então pela idade já avançada… seguiu uma senda e ladeou o rosto até à linha do maxilar, ganha velocidade à medida que outras gotas se juntam a ela e o seu tamanho duplica. E é então que por breves segundos, vê-se suspensa na barba de um dia…e cai.