sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

alamares

Uma luz difusa entra em filetes pelo espaço das ripas da persiana, como se fosse cortada fatia a fatia na máquina do fiambre, no momento do dia em que o Sol por fim aparece no horizonte.
Concentro-me no pequeno padrão florido do edredão. Esta não é a minha cama, este não é o meu quarto, aquela não é a janela por onde o sol costuma entrar. E lembro-me do brilho nos olhos dela no quase escuro da sala dois, juntos ao som do saxofone no melhor do jazz português.
Enquanto esperávamos pelo metro, os dedos dela brincavam com os alamares do meu casaco. Convidou-me para tomar um chá em casa dela dizendo, gosto dos teus botões.
Reina o silêncio, pequenas flores verdes e rosas protegem-me do frio, ela não está ao meu lado, antes de sair sussurrou baixinho perto do meu ouvido um, volto já não acordes! E eu não acordei.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

青森市, Aomori-shi

As gotas de chuva não seguem a mesma formação que as gotas de água que caem de uma torneira. As mais pequenas, com menos de 1 mm de raio, na verdade são esféricas. As que crescem mais, deformam-se na base, porque a pressão do ar puxado para cima na queda começa a conseguir contrariar a tensão superficial que a tenta manter esférica. Quando o raio excede cerca de 4 mm, o buraco interior cresce tanto que a gota, antes de se partir em gotas menores, fica com uma forma que quase parece um pára-quedas.
Era como nos sentíamos, sentados frente a frente numa pequena mesa redonda, acabados de cair de pára-quedas! Depois dos pedidos rabiscados no pequeno bloco vincado do empregado, ficamos calados dentro do silêncio incómodo, fugindo do olhar directo um do outro, percorrendo os cantos e recantos em busca de algo para comentar, e eu pensava em todas as coisas que gostava de saber acerca dela. Será que ela gosta de tangerinas, de nabo cozido, de sopa e mantas. Será que ela gosta de dormir até tarde, de chocolate quente, de comida italiana, e do vento e da chuva de folhas que lentamente cobrem as ruas, será que ela gosta de jogar bowling, ou cartas, de ler em voz alta, de cozinhar para dois? que tipo de música ela ouve nos headphones pendurados no bolso do casaco? que livro ela pousa na mesinha de cabeceira sempre que o sono ordena mais alto. E como se os meus pensamentos fossem voláteis e tivessem condensado até aos seus lábios, ela disse:
-é pena já não terem os pratos do dia, aqui come-se bem, tipo comida italiana!
-gostas de comida italiana?
-gosto muito, é das minhas preferidas, se não tivesses ficado a namorar as moscas mortas ainda tínhamos chegado a tempo de comer a lasanha.
- olha quem fala, não fui eu que me babei com a barriguinha peluda!
Ela tem um sorriso fácil, lindo, perfeito. As maçãs do rosto tomaram a cor do cachecol que entretanto deslaçou, as dela parecem Fuji, plantadas no Japão na província de Aomori.
A meia hora que o almoço durou passou a voar, no cruzamento entre o meu caminho e o caminho dela, ficamos a olhar um para o outro, agora sem vontade de fugir!
-então até segunda.
-no sítio do costume?
-sim, pode ser. Antes que ela virasse costas perguntei, gostas de jazz?
-depende do jazz!
-tenho bilhetes para sábado à noite na casa da música.
-a que horas?
-deixa ver, acho que é às 10 da noite. Carlos Martins, talvez não conheças, mas de certeza que conheces Bernardo Sassetti no piano.
-sim conheço, é muito bom. Então às 9h30 na casa da música? Tomamos o tal café antes.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

reflexo ou a montra onde jazem já mortas as moscas!

Alternando entre fraca, picada pelo vento, e forte, caindo aprumada, a chuva alimentava a esperança de a ver descer a rua e ali, sob o toldo da mesma loja, procurasse refúgio. A mesma rua de sempre, aquela que desci junto ao passeio, dissoluto na água, a mesma que me levou até ao mar, onde me tornei no que sou quando não sou gente!
Ela não vinha, pouca gente passava, olhava para a montra, vazia como sempre e pensava que hoje teria sido um bom dia. Contemplava o meu reflexo e pensava no mito de Narciso, de olhos brilhantes, cabelos anelados como os de Apolo, o rosto oval e o pescoço de marfim, impedido de se ver, apaixona-se por ele mesmo!
Um outro reflexo surge junto ao meu, o leve quase imperceptível perfume a rosas atravessa as cerca de 25 milhões de células olfactivas, tenho quase a certeza que as atravessou a todas! Disfarça um sorriso, prende-o pelo canto esquerdo da boca enquanto diz:
-interessante esta montra!
Ainda sob o efeito inebriante que o seu perfume provoca lá sai qualquer coisa como uma única letra:
-é!
E continuamos a olhar a montra, engulo em seco e procuro algo inteligente para dizer, o sangue retorna ao cérebro depois de se ter esvaziado todo algures pelo odor a rosas!
-não me canso de olhar para ela! Digo quase em desespero…
-qual delas? Pergunta ela, soltando o riso até agora contido, apontando para as moscas que jazem mortas sob a cartolina comida pelo sol!
- aquela ali, digo apontando para o seu reflexo, a dos cabelos ondulados, de olhos quase verdes.
-não é má! mas olha que aquele ali também não é de se deitar fora! Aponta para um homem corpulento, um trolha, que no interior da loja nos olha com estranheza. - Aquela barriguinha peluda, tão sexy!
-queres conhece-lo? pergunto, mantendo um ar sério.
-talvez noutro dia. diz, num tom sonhador, ao mesmo tempo trocista, mantendo o sorriso nos lábios. É a primeira vez que nos olhamos frente a frente. E aproveito a deixa para a convidar para um café.
- ainda nem almocei! reclama
-eu também não, mas já vinha preparado para te convidar para um café!
-então já vinhas preparado?! Não parecia…
-é, nunca corre lá muito bem!
-então vamos almoçar?
-costumas ir almoçar com estranhos?
-só as terças-feiras, às sextas não é muito comum, por ser para ti abro uma excepção, não somos assim tão estranhos, já nos abrigamos duas vezes no mesmo sitio!
-duas? pensei que não me tinhas visto naquele dia em que chovia a potes, cântaros e alguidares…
-claro que vi! o dia não me estava a correr nada bem, foi um mau dia.
-se foi…

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

mito de um garanhão

Um som profundo, distante, como o bater do coração. O leve tamborilar do sangue bombeado, atirado contra as veias, e acordo. Não é dentro, é um som do exterior, por baixo da minha cabeça, abafado pelas penas da almofada, do relógio ainda preso ao pulso. Ainda? Mas que horas são? O despertador deixou passar a hora, impunemente, sem sequer uma repreensão, e eu já estou atrasado, adormeci assim vestido. Lembro-me de estar sentado na beira da cama, enquanto tirava as botas, cansado, tão cansado que mergulhei no leito e em apneia me deixei ficar.
Não tenho tempo para analisar o que aconteceu, nem para um banho, nem mudar de roupa e esta barba que começa a cobrir o rosto e ao longo do dia vou ouvi-la crescer como ervas daninhas. Tenho de sair, no elevador ato os cordões, corro para o autocarro, se perco este então nunca chegarei a tempo, e logo hoje, logo hoje que fiquei com a responsabilidade de abrir a porta, eu que chego sempre a tempo. Cai uma chuva fraca, daquelas que nem parece que está a chover, mas que depois molha os que são tolos por pensar que não molhava!
E chego mesmo em cima da hora, parece que tão em cima que a pisei, e coitada ainda grita! Os olhares medem o tamanho da barba, a mesma roupa de ontem, o cabelo espetado para o lado em que adormeci: “Deve ter sido cá uma noite! Ganda maluco, as miúdas não te largam!”
Estou sem pequeno-almoço, sem jantar e sem lanche, a ratazana que habita o meu estômago teve ninhada! Mas pior que tudo é a falta do meu vicio, a falta do amargo e quente café!
Hora de almoço: tenho a peregrina ideia de ir a casa tomar banho e mudar de roupa, chove a potes, alguidares, panelas e tudo mais e abrigo-me no mesmo toldo da mesma loja, aquela de montra que continua vazia. E ela chega com o perfume de rosas, o cabelo preso ao cimo da nuca, e o rosto limpo e perfeito, onde moram uns olhos que não olham para mim. Cheiro a cão molhado, nem eu olharia para mim nesta triste figura e entro na chuva, esqueço as rosas e desejo diluir-me no aguaceiro, escorrer rua abaixo junto ao passeio, junto aos pés dela, verter no bueiro, escoar pelo esgoto, mergulhar de cabeça no rio e então desaguar no imenso oceano, e de novo tornar-me cartilagem, escama, dente afiado e barbatana.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

procura-se

Procura-se a menina que hoje se abrigou da chuva que caia imensa, sob o toldo daquela loja de montra vazia! Tinha cabelo ondulado, tocado por minúsculas gotas de água. seriam umas 13h, ia a casa almoçar, e abriguei-me mesmo ao seu lado! o perfume era de rosas, delicado quase imperceptível. Se por ventura vir este meu recado, deixe um comentário, de preferência um simpático. gostei muito da companhia, mesmo que tenha sido apenas durante um bocado! Até a chuva ter parado, e ela ter seguido rua acima, na direcção oposta da minha!