terça-feira, 2 de agosto de 2011

Danae

Conheci Danae numa noite de céu limpo, quente e sufocante como ela própria. A primeira vez que a vi fazia parte de um grupo ruidoso, com pouca ou nenhuma educação que jantava na pizzaria onde eu fazia um part-time de verão. Mesmo no meio da confusão foi logo nela que reparei, talvez pela juba que ostentava orgulhosamente, e que ornamentava um rosto singularmente belo e delicado. O espaço era pequeno e por isso dividiram-se por duas mesas, na separação natural de sexos. Eu fiquei destinado a atender a mesa dela, e depois de muitos pedidos e alterações, já só queria que as horas passassem depressa, nem aqueles olhos claros me davam ânimo para aturar as piadas e o gozo provocatório.
Voltei a vê-la nessa mesma noite, já tinha acabado o meu turno e caminhava cansado, indiferente pelo meio dos bares e discotecas, abstraído das raparigas nórdicas com as suas saias reduzidas que dançavam na rua, tropeçando nos polícias armados e nos bêbados dos ingleses, queimados do sol envergando t-shirts do Arsenal! E eis que ela surge, acabada de sair de um quadro de Klimt, vomitava tinta azul da Prússia à porta de um bar da Oura! Apanhei-lhe os cabelos longos vermelhos de fogo no topo da nuca, para não se sujarem com o pigmento e perguntei: “Estás bem? Queres que te leve a casa?”
“Leva-me a ver os reflexos prateados no mar…” E eu levei-a pela mão até ao mar, descemos a rua sem trocar palavras, sem soltar a mão frágil dela, embriagado pelo cheiro de terra molhada que emanava, queimado pela chama, rendido ao poder que o seu olhar exercia sobre mim. Foram três noites inesquecíveis, imerso no corpo sardento e pálido de Danae, alheio a tudo quanto nos rodeava.
Passávamos todo o tempo juntos, como se fossemos o prolongamento um do outro, deitados ao sol ausentes das subidas e descidas da maré, a passear pelas ruas em calçada alva, banhos nocturnos em piscinas alheias, corpos despidos iluminados pelo luar, a dançar de bar em bar até ao limite das força e depois o resto da noite dormíamos na varanda do aparthotel, numa espreguiçadeira surripiada, e entrava nela sob um tecto de estrelas!
 Não voltei à pizzaria, todo o dinheiro que tínhamos gastamos a viver como reis, comíamos do que havia de melhor em restaurantes com esplanadas, assentes em estacas na praia, vistas românticas ao pôr-do-sol, onde os clientes vestiam marcas e preconceitos, e pagavam com cartões dourados, e nós de havaianas, pedíamos sangria de Moët & Chandon e morangos!
 E numa madrugada, Danae partiu, sem dizer nada. Acordado pelo guincho de uma gaivota, não a encontrei a meu lado.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

sofá

O estofo cinzento gasto nos cantos, braços bastante ruços do uso, respeitável pela idade visível nos fios ao dependuro, mas mesmo assim confortável pelo conteúdo. Costas arrimadas de almofadas balofas e trombudas, dispersas e pachorrentas numa desordem casual. Rasga-se o tecido numa boca, antes de falar cospe em pedaços a espuma de enchimento. Solta a língua de forro esverdeado e fala num dialecto errante e singular, frases de preguiça e ócio, cheias de sorna e mandriice.
Se a todos os ouvidos fosse familiar esta semântica, certamente haveria muitos olhos arregalados e bocas boquiabertas. Os dotes descritivos do meu sofá, espectador assíduo de momentos íntimos, fariam corar o mais descarado dos rostos.
É um exímio contador de histórias, umas genuínas, outras nem por isso. Descendente directo de um suffah que serviu de trono a governantes árabes, e de um récamier com encosto em ambas as extremidades, conhecido como fainting couch, onde frequentemente as damas do período Vitoriano desmaiavam por dificuldades em respirar dentro do espartilho.

Confessou-me um destes dias que tinha um sonho, não era um sonho que falava da necessidade de união e coexistência harmoniosa entre homens e sofás, mas um sonho de ver publicado um dos seus relatos. Fui nomeado com grande pompa e circunstância como tradutor oficial, acumulando também as funções de escrivão da puridade.

E então reza assim a história:
“Corpos quentes no assento,
se contorcem e do sono me despertam
roçando a entretela, provocando atrito.

Rubescentes, contorcem-se, remexem-se do pudor.
a paixão ferve à ebulição, agitada em lume lento.
Línguas que se enlaçam, se entendem no sabor,
humedecem e permanecem em continuo movimento.

prazenteira, oscilante num vai e vem permanente.
Clítoris que endurece, estremece
e perturbada, empurra o pretendente.

Suor que escorre dos amantes,
juntamente com o fluido feminino,
Oh! Doçura divina dos deuses,
infâmia impura que me mancha o tecido!

Duro e viril, o pénis golpeia a montada,
Arqueiam e arfam ruidosos,
gemidos leitosos de orgasmo.”

sexta-feira, 15 de julho de 2011

S. João

O primeiro balão sobe nos céus ainda raiado de sol, oscilante, indeciso pelo vento que o empurra, divertido colorido, sobe até desaparecer do meu campo de visão. O calor das brasas já se sente à distância, os pimentos são os primeiros a sentir a grelha, um cheirinho vai-se espalhando e as sardinhas cobertas de sal grosso são alinhas assim que os pimentos são virados. Ela abraça-me e rouba um trago da minha cerveja. Sussurra ao ouvido: cheiras a sardinha, tubarão!
Mesas improvisadas dispõem-se, cadeiras e bancos encavalitam-se, cotovelos que se guerreiam pelo espaço, impacientes as batatas cozidas com casca, esperam pelo derrame do azeite e pelo pimento cortado escamado da pele tostada. A broa que veio de Avintes, cortada ao alto como colunas gregas, grita pela sardinha, e as azeitonas escolhidas a preceito para a ocasião, vão padecendo pelos pires em forma de caroço! O caldo verde já está a ser servido na louça de barro, alguém se esqueceu da tora no fundo da panela. Os copos e tigelas enchem-se de tinto, unem-se aos risos em brindes à noite que se demora, ao dia que não se quer ir embora.
E as sardinhas vão deixando as grelhas, gordas e de pele dourada pelas brasas, quando as últimas são levadas em travessas, já o sol refreou e o céu está duplamente estrelado com balões de S. João!

Dá-me a mão bem apertada e guia-me pela multidão, martelos que guincham intermitentes, martelam uma e outra vez, nem a “monaria” se livra de uma marretada bem certeira! E o fogo explode no ar, cruza o nocturno e acende os céus de um lado ao outro. Procura os meus braços em volta dela, sinto como bate descompassado o seu coração, agitado da emoção e ainda acelerado da corrida por entre a massa de pessoas que se comprimem como um rio entre margens.
Num remoinho de cheiros, sopros queimados da pólvora, alhos-porros e erva-cidreira que dançam de cabeça em cabeça, para quem teima em manter a tradição, regressamos a casa onde a minha avó já prepara a cevada e a regueifa com manteiga.

Diz-se que a água está benzida nessa noite, protegendo os audazes das doenças durante o ano. Sei de uma praia deserta, quase a meia hora de viagem, é para onde a levo antes que o dia desperte e o feitiço termine. A água enregela os corpos despidos, ela pela minha mão confia no mar e deixa-se guiar, do mesmo modo que me deixei guiar pela multidão, e mergulhamos no sal frio entrando numa onda que nos percorre, pois só assim o banho é “virtuoso”, excomungando o mal dos amantes!
Enrolamo-nos na toalha, os corpos juntos aquecem-se e tornam-se rubros e apetecíveis. O quarto-minguante de lua protege-nos sobre a areia húmida da noite, e ela recebe-me no meio das suas pernas cobertas de salitre!

terça-feira, 12 de julho de 2011

avó

Inclinado na janela de beiral vermelho, conservada a madeira pela pintura imperfeita saliente de bolhas, lembro-me perfeitamente do seu aspecto peculiar de uma janela com sarampo. Pequenos orifícios abriam-se por onde a chuva havia de escorrer, e os meus dedos cabiam neles, como lagartas curiosas sujas de pó.
A minha avó segura-me, passando o braço em volta de mim, e conta-me a história de cada gato que vagueia preguiçoso os telhados adjacentes ao velho palacete onde vivemos.

O amarelo tigrado era o mais imponente deles todos.” -observa como é grande a sua cabeça, digna de uma coroa!” Dizia a minha avó, numa voz distante que nem o tom me é familiar. Torrão foi o nome que recebeu e era sempre o primeiro a servir-se dos parcos restos que ela lançava ao telhado à revelia dos vizinhos. A gatinha malhada de branco em pêlo preto era das suas preferidas, Tia era mãe extremosa e sempre atenta, apesar da falha de uma vista, perdida sabe-se lá se por doença ou numa bulha. O preto magro como um ramo alto de árvore, saltava paredes como se não houvessem leis da física, mas isso a minha avó não sabia explicar, só me sabia dizer que quando nasceu era bem negro e que o sol lhe foi comendo a cor do pêlo. Trinca era como lhe chamava. E depois ainda havia o Turras, um gato pachorrento arraçado de siamês, que apesar do seu tamanho era manso como um gatinho bebé e pouco mais sabia fazer que passar o dia a dormir e a distribuir turras, nem sempre bem recebidas.
Já não moram na minha memória todos os gatos que se alimentavam por ali, indiferentes a quem os sustentava e lhes acrescentava um nome bem como uma história sobre as suas aventuras e desventuras de felinos indomáveis!

Um lenço de seda vermelho vivo cobre parte do cabelo, caindo junto à fase, dos lóbulos rasgados a quente, pendem brincos compridos de contas brilhantes que lançam reflexos de luz em todas as direcções. Entre os olhos negros cheios de alma, possui um sinal vermelho sobre a pele morena, vincada de rugas sábias. É assim que quero perpetuar a minha avó na memória, este rosto temperado pelo sol e pelos anos, os seus braços que me prendem repletos de pulseiras douradas e prateadas, lisas ou ornamentadas. Não aquele esquelético olhar vazio da dor, a pele cinzenta sedenta de vida, deitada no leito à espera da morte, aquele último beijo em que me tomou a face nas suas mãos, pergaminho antigo a desfazer-se sobre folha viçosa de limoeiro!

Tinha cinco anos quando me despedi dela e dos gatos que habitavam os telhados adjacentes ao palacete, com eles deixei ficar a chupeta de estimação, a última de todas. Um magnífico elefante decorado com tecidos ricos e pinturas florais desceu a rua comigo montado sobre a sua cabeça, coberto por um enorme guarda-sol amarelo, todos os vizinhos vieram à janela admirar tamanha imponência. Da varanda do primeiro andar, os meus avós paternos estenderam os braços para me alcançarem e com facilidade me içaram do cimo do animal. As vestes principescas foram despidas, descalço e de roupas simples fui libertado no mundo.

A última vez que a vi, a sua imagem tornou-se nítida à medida que caminhava ao meu encontro numa extensão de areia sem fim, onde o mar tinha deixado marcadas as ondas. Primeiro um vulto alto, esguio, indistinto mas consciente na minha mente que se tratava dela, depois aproximou-se e tornou-se evidente, os olhos negros repletos de conhecimento, brilhantes como diamantes, a pele morena mas quente que tocava no meu rosto como tímidos raios solares.
“-como estás crescido! quase um rei...” Disse numa voz que sempre conheci mas nunca me lembrei. “–Mas ainda não chegou a tua hora, ainda é cedo meu príncipe, um dia voltaremos a estar juntos, mas não já.” E terminou a frase com um sorriso que rasgou o rosto em luz, e me atingiu como uma explosão silenciosa em que só senti e repulsão do ar, como se algo me puxasse para um túnel sem fim, e fileiras de luzes fluorescentes passam sobre mim...

sexta-feira, 8 de julho de 2011

mãe

Houve um tempo antes do tempo, antes de eu nascer, o tempo da concepção, o tempo dentro do ventre em que fui carne e sangue dela. O dia em que nasci foi dos mais frios desse Inverno, mas ela não se lembra. Diz que não se lembra do céu escuro, das janelas velhas, da cor das paredes, ou do meu pai ali ao lado. Não se lembra com clareza das dores, nem do tormento por que passou, não se lembra de sangrar nem de gritar, só se lembra dos meus dedos esguios e abertos, aflitos. Lembra-se da pequena cabeça perfeita de cabelo negro, do cheiro que sentia ao mergulhar a cabeça em mim, do calor nos seus braços, dos lábios e nariz pequeno. Roxos os pés, contou os dedos.
Não me lembro desse tempo, só sei do que ela me conta dele, enquanto estou sentado ao colo dela, rodando a chupeta vermelha vezes sem conta até adormecer, disso eu lembro-me.
Lembro-me de um dia quente no fresco do cimento, jogadores de futebol esperam a sua vez para serem empastados de uma mistura de farinha e água que a minha mãe cozinhou num pequeno tacho, ao lado a caderneta aberta no chão da varanda. Ela senta-se na soleira da porta e fica a olhar com um sorriso. É a minha primeira memória e é junto dela.
Por volta da mesma altura, num calor idêntico, junto à erva que cresce alta no acesso à garagem, há um rato inanimado do tamanho da minha mão. Passo os dedos pelo pêlo macio, mas imóvel, é fofo de olhos fechados e patas recolhidas. Pego nele com a maior das cautelas e apresento-o de palma aberta à minha mãe. Não entendo o gesto dela de me sacudir a mão acompanhado de um grito. É a primeira vez que ouço falar na morte.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

desistir

 Debruçado sobre o lavatório, encho as mãos de frieza e em vão lavo o rosto, tentando que a água que desaparece pelo ralo leve esta perversidade. Libertou-se da incandescência, despegou-se do granizado e escorre viscosa num só sentido, numa só corrente.
Não me reconheço no reflexo, quem é aquele pergunto, aquele ali de olhos raiados, escuros e frios, com o rosto lavado de sentimentos, molhado de rasgos de água que correm pelas veias dilatada do pescoço e perdem-se pela pele nua do tronco. A inspiração esforça as abas do nariz obrigando o ar a entrar, os intercostais elevam-se para o aumento da caixa torácica, mesmo assim nem toda a atmosfera que envolve a Terra seria suficiente para encher o vazio.
Sinto que vou sufocar cada vez que o nó na garganta vai apertando.
Acumulei, absorvi tudo como uma esponja, cada mililitro, até não existir mais como. E vomito, em violentas contracções da faringe, vomito o ódio impregnado, a culpa, a dor, não de um azul prussiano tingido, mas um crude viscoso tremendo, enchendo a sanita das minhas perversões.
-Deita tudo fora, só te estás a consumir, a sofrer.
Não há uma presença física nesta voz, no entanto consigo sentir o calor no meu ombro como se pousasse nele a mão para me acalmar. Exausto, sento-me no chão apoiando as costas na banheira. O diabo atrás de mim deitado estende os dedos necrosos onde mais uma vez volta a pender a mortalha.
-já deixaste bem clara a tua posição, se não entendem o problema deixa de ser teu!
–mas eu pedi-te uma opinião?
-nem precisas…por ser para ti eu ofereço!
-não tens mais nada para fazer do que me aparecer assim?
-claro que tenho, mas adoro as nossas conversas, são sempre tão divertidas, tens um sentido de humor irreal…
Devolvo o charro e deixo-me cair dentro da sensação confortável do fumo inalado.
-de quem é a outra voz?
-não faço ideia, tanto pode ser Deus como o primeiro-ministro! Pode ser real como a tua rainha que acaba de acordar, ou pode ser como eu e os meus charros, fruto da tua imaginação!
Penélope bate à porta perguntando se estou bem, sento-me na beira da banheira. Passa a mão pelo meu rosto preocupada, descanso-a dizendo que daqui a nada volto à cama beijando-lhe as pontas dos dedos.
-que pecado… que tentação… e tu aqui a destilar culpas e dores! Esquece essa merda, sinceramente não sei o que ela vê em ti, mas seja o que for não mereces… e ainda perdes tempo a pensar em quem magoas, no fim vais acabar por a magoar a ela! Se eu estivesse no teu lugar, estava na cama bem encostado aquele corpinho…
As minhas mãos saltam directas para o seu pescoço largo e vivo de artérias, apertando-o e comprimindo com todas as forças que me restam, as asas abertas arrastam tudo à passagem. O desgraçado ainda escarnece de mim, divertido com a minha fúria, não lhe inflijo qualquer sofrimento, parece que só sente prazer!
-é isso mesmo anjo, dá luta… não desistas!

sexta-feira, 27 de maio de 2011

insónia

Aninhada sob a minha asa, dorme a soberana da minha afeição. Vigio-lhe o sono na minha insónia, extasiado pela sua beleza. Sigo a curva superior até ao lóbulo da orelha, furado sem brinco.
A perfeição de cada linha do rosto cativa-me o espírito.
Aos primeiros raios da manhã ela acorda, encolhe-se ainda mais na dobra deixada pelo meu corpo onde encaixa o seu. Antes de voltar a fechar os olhos pergunta.
-não dormes?
-só quando sonhas!
-dormes nos meus sonhos?
-sim.

terça-feira, 24 de maio de 2011

sinnerman

“Meu Deus, livrai-me do ciúme! É um monstro de olhos verdes, que escarnece do próprio pasto que o alimenta. Quão felizardo é o enganado que, cônscio de o ser, não ama a sua infiel! Mas que torturas infernais padece o homem que, amando, duvida, e, suspeitando, adora.”
William Shakespeare (Otelo)


Sempre que falava comigo, mantinha a mão pousada no meu braço e às vezes percorria até ao ombro elogiando os bíceps em forma! No início não dei grande importância, certas pessoas necessitam de um contacto físico para se ligarem às outras, como um fio condutor que as liga à terra, até que começou a arranjar desculpas disparatadas para ficarmos a trabalhar até mais tarde, sentando-se ao meu lado e inclinando-se constantemente, a proximidade era tal que sentia o peito dela comprimido contra mim.
Embora cego de amor por Perséfone, aquela mulher mais velha e hierarquicamente superior, ensinava-me o caminho tacteando o pecado até às portas do Inferno!
Um dia fomos tomar um copo depois do trabalho, sentia-me estranhamente atraído pelo modo como falava e como humedecia o lábio superior pela passagem lenta da língua, o cabelo curto roçando os ombros despidos, a mão que percorria a minha perna sem qualquer pudor e um sorriso desmedido que sussurrava várias vezes ao meu ouvido: prazer. Deixei-a à porta de casa, impelido de entrar pelo aperto nas rédeas, um freio no desejo que me levava de volta ao estado de cegueira e aos braços da bela Perséfone.
Tomei a linha vermelha, à minha frente sentado de perna cruzada, o diabo esboça um sorriso enquanto inspira o fumo. estende-me a mortalha meia fumada. –César, deixas-me numa situação complicada, é que não consigo decidir se és estúpido ou idiota…
Absorvo o fumo lentamente, sinto um formigueiro percorrer o corpo -o diabo que te carregue!
Expele uma gargalhada gutural, profundamente assustadora: -só tu César, para teres piada numa situação destas! Mas admito que me enganei, nunca pensei que fosses cair na tentação…
Devolvo-lhe o pequeno prazer aos seus dedos negros.-que esperavas tu que eu fizesse?
-esperava tudo caríssimo, menos isto, foi uma surpresa! tens uma mulher belíssima, tão bela que à própria Afrodite faz inveja, e cais assim na tentação… mesmo sendo diabolicamente possessiva, Perséfone não merece!
-ela não precisa de saber e não aconteceu nada!
-mas ela sabe, oh César... ela sabe! e o que aconteceu, mesmo sendo como tu dizes… nada, transpira pelos teus poros, fedes a pecado! Nem imaginas, adoro esse teu cheiro…Só fico um pouco desapontado por não teres dado aquele passo final, mas era impossível com essas pendurezas albas que trazes pelas costas! –olha anjo, saio na próxima.
Mais uma vez os dedos necrosos passam a mortalha:- bom proveito! Não te esqueças que Perséfone é minha protegida, não esperes que tenha pena de ti… penas já não te faltam! já me esquecia, cuidado com o prato vermelho com as merdas que parecem arroz!

sexta-feira, 11 de março de 2011

trajectória com c

Desvio-me da jarra azul de porcelana fina chinesa, estilhaçada em pedaços contra a parede, roçou o topo da minha asa esquerda deixando pequenas penas soltas pelo cálamo.
-pára com isso! Grito, saindo da trajectória com c, de um prato com motivos campestres em tons pastéis. – isso magoa, pára!
-estou farta, aquela p…que nojo, diz-me, estiveste com ela?
-acalma-te por favor, não sei do que estás a falar…e não consigo prestar total atenção se não parares de me atirar coisas.
-aquela tua coleguinha, a que se faz a ti constantemente…
-outra vez esta conversa, já te disse que nada se passa, tens de parar com as crises de ciúmes…
-não acredito que resistas às investidas dela, diz-me, podes dizer…As lágrimas enchem-lhe os olhos e alcança mais um prato, este por sinal mais pesado, vermelho vivo com pequenas decorações que parecem arroz.
- Já te disse mas volto a dizer que sou cego por ti, que nada mais interessa, és tu e só tu, não sei que mais te possa dizer... deixa o prato viver mais um dia...
Abraço-a de braços e asas, encosto as lágrimas dela junto ao meu peito e sinto que lentamente se acalma. –eu amo-te, mesmo com essa pontaria terrível!

segunda-feira, 7 de março de 2011

a queda

Fileiras de luzes fluorescentes em movimento, funcionam de modo semelhante aos tubos de descarga de gás néon, possuem um par de eléctrodos em cada extremo. O tubo de vidro é coberto com um material à base de fósforo, este, quando excitado com radiação ultravioleta gerada pela ionização dos gases produz luz visível. Internamente são carregadas com gases inertes a baixa pressão. As luzes pararam sobre mim. Alguém me pergunta o nome, a idade, fico sem responder, sei que o tubo de vidro daquela lâmpada está cheio de árgon, mas não sei o meu nome.
À medida que vou tomando consciência do sítio onde estou, as dores surgem, diferenciadas, umas mais intensas, outras muito superficiais. Reparo numa tira presa ao pulso, onde consta o meu nome, a minha idade…e faz todo o sentido. Tenho o pescoço imobilizado, a confusão à minha volta é grande, estou na urgência de um hospital, pessoas apinhadas em camas encostadas pelo corredor. Deslizo para uma sala, a roupa é cortada pelas costuras… o blusão de couro, agora me lembro, devo ter tido um acidente com a mota. Deslizo para outra sala onde me transferem para cima de uma plataforma, as dores vão diminuindo à medida que o conteúdo daquela bolsa de plástico, ali pendurada, vai sendo despejado na corrente sanguínea. Libertam-me do colar cervical e volto ao corredor. Um agente dirige-se a mim e entrega-me os documentos e as chaves de casa. Não consigo lembrar de nenhum número nem de ninguém a quem ligar, já me lembro da minha morada, mas números está complicado, é como um espaço em branco. Ele explica o que aconteceu, a mota foi levada para o parque da esquadra, o outro deu-se como culpado.
Sento-me, a confusão diminuiu um pouco, tenho frio mas não sinto dores. E reparo nela, sentada de perna cruzada, numa saia curta que provoca acidentes. Tem uma cauda que parece verdadeira, pendurada ao fim das costas, e um par de chifres que lhe dão um invulgar aspecto. Deve ser Carnaval…ela repara que estou a olhar fixamente para a ponta da cauda que tem vida própria, a droga que me deram é poderosa, dirige-se a mim e a cauda não fica caída, serpenteia atrás dela…
-donde é que tu caíste?
-de uma mota…respondo, sem desviar os olhos da cauda
-ainda não tens asas…devem levar uns dias a crescer…
-que asas? E pela primeira vez olho na transparência dos seus olhos escuros, realçados pelo negro da pintura.
-as asas que te vão crescer, nas primeiras vértebras torácicas.
-O que foi que andaste a tomar?
-nada anjo, não estou aqui por mim, só venho acompanhar uma amiga, e essa sim, tomou demasiado do que não devia. As asas que te vão crescer, imensas, brancas, penugentas…deves ter feito muita merda para te terem dado umas…
Volto a ser levado para a primeira sala, aquela conversa é tão surreal como tudo o resto. O médico espeta a radiografia da minha cabeça contra um quadrado de luz e comenta a dureza dos temporais, só agora reparo que tenho uma parte da cara raspada. Depois passa à coluna vertebral, distingue-se perfeitamente as cervicais das torácicas…estão intactas, sem cifose ou escoliose, invejável até diz o médico…e explica que vai doer nos próximos dias, receita um anti-inflamatório, o alcatrão que se fundiu à minha pele vai ter de ser raspado aos pouco.
Passo a mão pelo fundo das costas e sinto a pele dorida.

E foi assim que conheci Perséfone (não confundir com Penélope!) há cerca de 4 anos atrás, nas urgências do St. António, numa sexta-feira muito atribulada. Mas só a voltei a ver duas semanas depois.

No dia seguinte, as dores nas costas intensificavam-se, o fundo estava negro do alcatrão e de um enorme hematoma, mas a dor mais incisiva provinha de um pequeno corte, ligeiramente abaixo da linha dos ombros.
Na segunda-feira de manhã fiz um esforço para voltar à vida normal e ao trabalho, ganhei coragem e ergui-me da cama. A caminho da casa de banho, algo estranho como um sussurro atrás de mim, fez-me olhar por cima do ombro e tropeçar de susto.
Isto é um sonho! pensei, tenho de acordar...e fiquei estático em frente ao espelho, na penumbra, com receio de descobrir a existência de um par de asas brancas, imensas, penujentas, reflectidas um pouco acima dos meus ombros.
E foi assim que tive asas.

Duas semanas depois, uma cauda prendeu a minha atenção no meio de uma pista cheia, em dia de noite da mulher (era um sonho que eu tinha escrever em dia de noite...)… Alcanço a extremidade da cauda, a pele macia mas rija, e puxo-a. A primeira reacção é ríspida mas muda num segundo sorriso largo e interminável.
Pela primeira vez sinto as asas estremecerem, assim que ela passa a mão ao de leve sobre elas.
-como cresceram!… tenham calma que não vos faço mal!
-como é que sabias que iam crescer? E como é que ninguém as vê?
-tem calma anjo, vamos para outro sítio mais calmo conversar…
Saímos para o ar frio, livre do fumo, da acumulação de pessoas, do fedor humano.
-quando te vi no hospital estavas a olhar para a cauda e não para as minhas pernas… vi logo que eras diferente! consegues ver a minha cauda porque és um anjo, eu consigo ver as tuas asas porque sou uma diaba, no fundo não somos assim tão diferentes.
-mas eu não tinha asas…como é que sabias que não ia ser como tu? Ou só os anjos conseguem ver os diabos e vice-versa?
-não, também vês os outros anjos…ai lindo, que confusão deve ir nessa tua cabeça, uma das diferenças é que os anjos caem …e tu tinhas ar de quem tinha caído!
-isto é tudo muito irreal…
-já passei por isso…vais ver que te habituas, no fundo é tudo igual…ou quase tudo!
Entramos num táxi em direcção ao centro, fomos tomar um copo sentados na beira do passeio, enquanto assistíamos ao movimento dos cafés e pubs a fecharem as suas portas.
-desculpa insistir nisto, mas continuo sem entender…disseste no hospital que eu devia ter feito muita merda para merecer umas asas! Qual é a lógica?
-esquece tudo o que te impingiram até agora…tens uma segunda oportunidade, se te nasceram asas é porque não a podes desperdiçar como antes fizeste…é assim que funciona. De certa forma elas vão controlar os teus impulsos, aqueles que não conseguias controlar… se não as tivesses, de certeza que não estaríamos aqui ao frio a conversar! suspira...

Naquela noite acompanhei-a até casa, não subi as escadas, nem sequer transpus a porta de acesso ao prédio, estava colado ao passeio, despedimo-nos e ela voltou a afagar as asas, dizendo "até qualquer dia!"
E foi mesmo até qualquer dia, um dia que o destino lá traçou munido de régua e esquadro, com um estilete fino. Deu-lhe imenso trabalho, horas e horas de projecção, à luz de um candeeiro suspenso sobre o estirador…
Mais ou menos um mês depois ia a dormir no 604, não era muito comum adormecer no autocarro logo de manhã, mas as insónias faziam-me vaguear as últimas noites pelos lençóis sem conseguir pregar olho. Uma travagem brusca, e regresso à realidade. O motorista abandona o autocarro, um murmurinho espalha-se, atropelamento…saímos todos, parece que uma rapariga foi atropelada por um carro que seguia à nossa frente, não estou muito longe do trabalho e decido continuar a pé, alguém já está a ligar para o INEM, não sou de ficar a ver o espectáculo e parece que a moça até está bem, já a sentaram na beira do passeio.
Mas é ai que volto a sentir aquele estremecimento, uma agitação nas rémiges das asas faz com que me volte e eis que ela surge mais uma vez na minha vida, a menina da cauda, a bela Perséfone, sentada na beira do passeio!
-Estás bem?
-olha quem ele é…já estive melhor, mas acho que foi só o susto.
-as coisa que tu fazes para chamares a minha atenção. Ela ri, enquanto me ajoelho em frente a ela, estamos ali os dois na amena cavaqueira, o trânsito parado, as pessoas permanecem à nossa volta como espectadores de uma dessas peças românticas!

-Meia-leite e uma nata! Ela pede o mesmo para ela. Parece que o destino teima em nos colocar no mesmo caminho!
-parece que sim…mas será que tu me queres no teu caminho?
-ando sem dormir ultimamente, as coisas que me disseste naquele dia não param de ressoar na minha cabeça!
-pode ser falta de massa cinzenta…o espaço vazio faz dessas coisas!
-ui, uma piada…agora sim começo a ficar preocupado, talvez seja melhor ires ao hospital!
-agora a sério, não fiques a matutar nessas coisas, no início é complicado eu sei, mas com o passar do tempo vais voltar ao normal…ou quase normal! Mas não respondeste à minha pergunta…
-eu quero, mas algo me impede de dar o primeiro passo…
-não te preocupes que eu trato disso.
E beija-me, um beijo terno, demorado, de lábio contra lábio, sem ansiedade,o tempo pára e uma sensação de paz invade-me, um vazio preenchido!
-porquê que tens cauda?
-porque me destinaram um anjo!

sexta-feira, 4 de março de 2011

a arte da esgrima!

-Vieste cedo! Digo-lhe pelo intercomunicador, com a barba meia feita.
-estava com saudades tuas, meu Imperador…!
-sobe!
Deixo a porta aberta enquanto vou tratar do resto da barba, ela sobe e fecha a porta.
-ainda estás de boxers e de barba por fazer?
-é só tomar banho…
-e vestir?... ou vais assim? Abraça-me por trás e reparo que está da minha altura.
-estás mais alta! Viro-me para a ver melhor…fico embasbacado!
-gostas? Perguntou rodando sobre as pontas dos pés…
-adoro!
Cortou o cabelo, deixando comprido à frente e ligeiramente mais curto atrás, num volume em desalinho; uma moldura num rosto que o torna incrivelmente mais belo e uns olhos ainda mais verdes, lábios ainda mais deliciosos…num vestido que ela nunca usa, pernas que nunca mostra nuns saltos que a levam à minha altura.
-onde é que vamos mesmo, Sua Majestade? Puxando-a para mim pela cintura acentuada pelo cinto fino que usa sobre o vestido.
-o Meu Imperador vai tomar banho e vestir-se rapidinho!
Vamos jantar a casa de uns amigos dela, são três casais…querem conhecer-me, vão medir-me, testar-me, provavelmente fazer análises ao sangue e urina, umas quantas radiografias, e sei lá que mais.
Passo a mão da manete das mudanças para a articulação sinovial inferior dela, que é o mesmo que dizer joelho, e deslizo pela perna acima…
-pára César Manuel, que me excitas! Virá na próxima à esquerda.
Ela faz as apresentações, as amigas são daquelas que dão a cara apenas para receber um beijo e deixam-me suspenso no outro…ela repara e sussurra.
– depois compenso-te a falta de beijos!
-só preciso dos teus para ser feliz!
Ofereço a minha ajuda na cozinha, é o sítio onde me sinto melhor numa casa estranha, a cheirar os tachos tal como fez o João, aquele que era Ratão e que acabou cozido e assado no caldeirão! A dona da casa é simpática, gosta de comida italiana como eu; o dono nem por isso, ri alto e faz um esforço para ser o centro das atenções. A conversa prossegue à mesa, onde cada prato se encontra perfeitamente cercado de cada lado por fileiras de talheres e no topo por uma cascata de copos e copinhos. Não sei se a finalidade é assustar ou que eu faça má figura em frente à Soberana do meu coração, mas pelos vistos ninguém lhes disse que sou César, Imperador dos copos e talheres!
Penélope está com ar sério, talvez preocupada, mas o semblante altera-se quando lhe pego a mão e a beijo, e depois lhe sirvo água no copo certo! O jantar decorre sem grandes percalços, depois de uns quantos copos e talheres usados, o ambiente ameniza, o gelo derrete e escorre algures pelo soalho corrido de madeira. Mas falta a pergunta da praxe:
-Então César, ouvi dizer que vende livros?! Claramente provocador, o dono da casa opta pelo florete. Desembainho a espada fina sem gume, de pega francesa e cumprimentamo-nos com a arma num gesto rápido antes de dar início ao duelo! Ele acha que me rebaixa por eu não ter um cargo importante ou um canudo impressionante. Mas a dona da casa, claramente uma aliada, e preocupada que o combate quebre algum bibelô, remata:
-deve ser tão bom estar todo o dia rodeado de livros. Adoro livros! E Penélope aproveita a deixa:
-tens de ver a biblioteca deles…é magnífica!
E vamos ver a biblioteca, de facto, magnífica é o adjectivo apropriado, com estantes em madeira escura, iluminação direccionada, os livros ocupam a parede desde o chão ao tecto. A variedade de temas e autores é extraordinária, passo os dedos por algumas lombadas, edições antigas, encadernações preciosas…
Finalmente a noite chega ao fim, estou cansado das estocadas da lâmina mas mesmo assim não resisto aos apelos da minha rainha que me pede umas massagens, enquanto me enche de beijos!

quinta-feira, 3 de março de 2011

muro

Cerca de dois metros de muro em blocos de granito, alvenaria de pedra seca, dispensada da argamassa em cal e areia, ou até mesmo barro. As pedras de tamanho variável, deixam espaços, facilitando a subida. Mesmo nos sítios onde pedras menores foram colocadas para calçar as maiores, o acabamento irregular tornava a escalada interessante, não fosse a chuva que caía torrencial! O muro de cerca de dois metros do vizinho esconde pequenas preciosidades, mas é na Magnólia rosa que estou interessado, precisamente aquilo que o muro não esconde e ainda ajuda a alcançar! E corto-lhe um pequeno ramo, pedindo desculpa à árvore…dizendo que é por amor a uma rainha!

Quando a convidei para jantar na quinta-feira anterior, nunca imaginei o desenrolar dos acontecimentos que me levariam nesta noite de S. Valentin, a trepar cerca de dois metros de muro, sim é a terceira vez que o digo, para num acto desesperado cortar um ramo de Magnólia rosa. Fiz com esmero uma lasanha, comprei vinho, compus a mesa com velas e depois do jantar, ela disse que tinha de ir embora, o trabalho por acabar e o cansaço impediam-na de ficar. Não reagi, achei que era uma brincadeira quando voltou logo a seguir, mas afinal voltava porque se esquecera do telemóvel em cima da mesa junto ao sofá…implorei que ficasse, sugeri que a levava a casa mais tarde, queria estar com ela só mais um pouco e ela então disse que não, que aceita-se o não como um homem adulto, que não era uma criança…as palavras dela embateram de frente, não como uma onda, que essas eu sei como me desviar, mas como um muro, idêntico a este de dois metros em granito! E desde quinta-feira não voltamos a falar.

Deambulei pela cidade à chuva quando a noite já se impusera, diluindo o orgulho, amarrando à boca do estômago um pedido de desculpas. A Magnólia de braços rosa sobre o muro oferecia o presente de rainha. Ingénuo, o pé resvala na descida, o granito torna-se joelho e a pele torna-se muro, e o sangue escorre misturando-se com a chuva, empapando o tecido rasgado.

Espero que alguém entre no prédio, encharcado em água e sangue subo o lanço de escadas até à porta dela e quando a porta se abre, peço-lhe desculpa. os olhos enchem-se escuros, sem sinal do verde que os costuma habitar.

Podia ter dito” não chores!”, e ela podia ter pedido desculpas pelas palavras que atirou naquele dia, mas não dissemos nada. Já tinha libertado a única palavra que trazia quente, abrigada da chuva e do vento, e com ela todas as outras deixavam de ter sentido. Ela por seu lado, dissolvera todo e qualquer discurso em lágrimas, que lhe enchiam os olhos como uma represa de águas escuras que, cheia de tudo, transbordara pela face.
As bocas libertas de articular vocábulos, encontraram-se, e as línguas que as habitavam passaram a ocupar, cada uma a seu tempo, a boca oposta à sua! Despojados das roupas, umas molhadas outras secas, o tapete balofo em lã vermelha foi por fim, palco do concúbito. E não voltamos a falar…

quarta-feira, 2 de março de 2011

prática com açaime

a noite caiu sobre um dia indiferente e espero por ela na estação, enxuto, encolhido de frio. E eis que surge, radiante e aparentemente distante, mas atenta às horas e ao metro que se aproxima. Dois passos, ou qualquer coisa como um metro, mas para não voltar a usar a palavra metro exagero a distância e a dois passos dela, volta-se como que sentindo a minha presença, o meu vazio.
- chegaste agora?
- não, já aqui estava à tua espera.
- não te vi...
- estava encolhido e vazio!
- e agora estás mais preenchido?
- nem tu imaginas quanto!
- mas tínhamos combinado alguma coisa?
- não, eu é que resolvi fazer-te uma surpresa!
Entramos no metro, nem completamente cheio, nem demasiadamente vazio. os lugares lado a lado estão preenchidos, ficamos em pé à porta, cabeças juntas, tão juntas que o mais leve solavanco aproxima as nossas bocas.
-então vou ter de mandar uma mensagem ao outro a desmarcar...
- tu vê lá, se preferires estar com ele...?
Uma senhora já com alguma idade, nas proximidades lança olhares de dúvida...
-não, tu cozinhas melhor!
- é só nisso que sou melhor?
- também és melhor no sexo oral...
a senhora com alguma idade procura desesperadamente outra porta e distanciar-se da palavra sexo!
- assustaste a senhora!
- ela não tinha nada que vir para aqui ouvir a nossa conversa...
- mas espera lá, não mudes de assunto...só sou melhor nisso?
- não me estou a queixar...
- e o resto?
- no resto és mediano, só à excepção das massagens, nisso és fraquito!
- nunca tive reclamações...
- estás a ter agora, mas não é motivo para ficares preocupado, só tens de praticar muito e olha eu ando aqui com uma dor... devo ter dado um jeito nas costas! Podes praticar em mim...
- talvez precise de uma aulas particulares com uma tailandesa...
-talvez precises de um açaime e quem sabe, de uma trela...

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

hoplita parte dois

Com a perna apoiada no braço do sofá, deslaça as tiras de couro das cnêmides de bronze que lhe protegem a canela e o topo do joelho.
Penélope de olhos quase verdes e sorriso aberto provoca-me e beija-me através do elmo espartano de crina negra, aquecendo o metal ao toque, ao mesmo tempo que me liberta da couraça que ainda protege o peito.
-foi muito divertido, devíamos de o fazer mais vezes!
-Sua majestade gosta de me ver sofrer!
-gosto de te ver nessa couraça, nesse elmo de bronze reluzente …de lança em punho, feroz, tão destemido! Para quando uma próxima batalha?
-só daqui a muitos anos…
-mas gostei, principalmente da tua irmã… e dos teus avós, são uns queridos!
-hum! Não fiques viciada…
- estou só um pouco desiludida…andei a ter aulas de primeiros socorros e afinal nem tive de te fazer respiração boca-a-boca!
-ainda vais a tempo de o fazer!
agarro-a pela cintura e caímos no sofá. Já despidos de armaduras, ali ficamos adormecidos, exaustos da batalha e das tréguas, e da reanimação!

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

hoplita

Precisava de um gravador mental, um que fosse imprimindo na forma de fita magnética ou então digitalizando em bits e bytes todos os pensamentos que vou vomitando e que nem sempre conseguem alcançar o papel na forma de caracteres legíveis.
Ontem explodiam na minha cabeça, cruzamentos interessantes, palavras novas ou pouco usadas, hoje já não as encontro, mas a história é algo assim:

Desde a grande separação de 1982, funcionava um sistema complicado mas aprazível para ambas as partes progenitoras, baseado no "este dia é teu, este dia é meu"! Ainda o dia 23 de janeiro estava longe e já se tomavam medidas reivindicativas! tudo muito simples, se esse dia fosse à semana. Ouvia-os respirar de alivio, enquanto decretavam em diário da república: no dia 23 comemora com a família paterna no Porto, no fim de semana seguinte, comemora com família materna na Figueira!
A coisa complicava-se quando o dia 23 lá calhava num sábado ou domingo, não havendo entendimento entre as partes intervenientes. Da última vez que isto aconteceu, declarei que não voltaria a comemorar o meu aniversário com nenhuma das partes, passando os aniversários seguintes fora do país!
Este ano a pedido dos meus avós, e precavendo possíveis contendas, decidi convidar os dois lados da barricada para um almoço em minha casa. Não podia deixar de convidar também a realeza de Ítaca, avisando-a dos riscos a que estaria sujeita num almoço, não de uma, mas de duas famílias. Mas ela mesmo assim aceitou, colocando prontamente o seu elmo reluzente, armada de espada e de um pesado escudo, uma hoplita pronta para a guerra!

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

tempo frio

Pago uma rodada, brindamos à saúde, à amizade, aos longos anos de vida. Já é tarde. Sinto a falta dela na noite fria, que de tão fria me vai cortando o coração em pedaços e penso nela… a esta hora já sonha sob um edredão florido.
Não há outro sítio no mundo onde desejo mais estar, a não ser sob o mesmo edredão florido, e esperar que ela adormeça na dobra do meu braço, onde repousa os sonhos abrigada dos pesadelos pelo manto de penas.
Toco à campainha importunando o silêncio intenso, uns segundos depois o intercomunicador ilumina-se e a voz dela sexy e sonolenta diz:
-já demos, volte amanhã!
-desculpa vir acordar-te!
-a porta deve de estar trancada, espera um pouco, desço já!
Minutos depois, a luz do átrio acende-se e pelas escadas aparece a minha musa, de cabelo em desalinho, olhos minúsculos, pijama com ursinhos, enrolada num imenso casaco de malha. Raspo o vidro da porta implorando a entrada.
-seu vadio! Diz enquanto abre a porta, e lambo-lhe a cara em resposta!
-és mesmo doido e estás gelado! E subimos até casa dela, sigo o perfume que acaba de deixar, o mesmo que reconheço em qualquer lugar, a falta da minha inspiração tem destas coisas, rimar deixar com lugar é do pior que já tenho escrito!
E antes de se deitar, faz o aviso:
-não abras o armário, tive de meter o outro lá dentro!
-não era necessário, podias deixar estar, era mais um para aquecer a cama…
Tiro a roupa fria e deslizo pelos lençóis ainda quentes, abraço-a e ela beija-me dizendo:
-Parabéns!

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Penélope

Doce Penélope voltou trazendo o frio e a chuva no cabelo.
Eis a Rainha de Ítaca, de olhos brilhantes ofuscando as estrelas. Serena demora-se à porta do quarto, ostenta o meu casaco de alamares que lhe sobeja nas mangas. Fia um pensamento enquanto morde o sorriso no lábio, e começa a despir-se. Primeiro o casaco, lentamente caindo como um real manto pelas costas, depois as botas pisando o calcanhar, o longo cachecol em que a amarrei num beijo, as calças sem pressa, as camisolas que lança pelo ar na minha direcção, e por fim nua, gelada, a bela soberana desliza para os meus braços, onde a recebo num abraço quente, intenso debaixo do edredão!

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

alamares

Uma luz difusa entra em filetes pelo espaço das ripas da persiana, como se fosse cortada fatia a fatia na máquina do fiambre, no momento do dia em que o Sol por fim aparece no horizonte.
Concentro-me no pequeno padrão florido do edredão. Esta não é a minha cama, este não é o meu quarto, aquela não é a janela por onde o sol costuma entrar. E lembro-me do brilho nos olhos dela no quase escuro da sala dois, juntos ao som do saxofone no melhor do jazz português.
Enquanto esperávamos pelo metro, os dedos dela brincavam com os alamares do meu casaco. Convidou-me para tomar um chá em casa dela dizendo, gosto dos teus botões.
Reina o silêncio, pequenas flores verdes e rosas protegem-me do frio, ela não está ao meu lado, antes de sair sussurrou baixinho perto do meu ouvido um, volto já não acordes! E eu não acordei.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

青森市, Aomori-shi

As gotas de chuva não seguem a mesma formação que as gotas de água que caem de uma torneira. As mais pequenas, com menos de 1 mm de raio, na verdade são esféricas. As que crescem mais, deformam-se na base, porque a pressão do ar puxado para cima na queda começa a conseguir contrariar a tensão superficial que a tenta manter esférica. Quando o raio excede cerca de 4 mm, o buraco interior cresce tanto que a gota, antes de se partir em gotas menores, fica com uma forma que quase parece um pára-quedas.
Era como nos sentíamos, sentados frente a frente numa pequena mesa redonda, acabados de cair de pára-quedas! Depois dos pedidos rabiscados no pequeno bloco vincado do empregado, ficamos calados dentro do silêncio incómodo, fugindo do olhar directo um do outro, percorrendo os cantos e recantos em busca de algo para comentar, e eu pensava em todas as coisas que gostava de saber acerca dela. Será que ela gosta de tangerinas, de nabo cozido, de sopa e mantas. Será que ela gosta de dormir até tarde, de chocolate quente, de comida italiana, e do vento e da chuva de folhas que lentamente cobrem as ruas, será que ela gosta de jogar bowling, ou cartas, de ler em voz alta, de cozinhar para dois? que tipo de música ela ouve nos headphones pendurados no bolso do casaco? que livro ela pousa na mesinha de cabeceira sempre que o sono ordena mais alto. E como se os meus pensamentos fossem voláteis e tivessem condensado até aos seus lábios, ela disse:
-é pena já não terem os pratos do dia, aqui come-se bem, tipo comida italiana!
-gostas de comida italiana?
-gosto muito, é das minhas preferidas, se não tivesses ficado a namorar as moscas mortas ainda tínhamos chegado a tempo de comer a lasanha.
- olha quem fala, não fui eu que me babei com a barriguinha peluda!
Ela tem um sorriso fácil, lindo, perfeito. As maçãs do rosto tomaram a cor do cachecol que entretanto deslaçou, as dela parecem Fuji, plantadas no Japão na província de Aomori.
A meia hora que o almoço durou passou a voar, no cruzamento entre o meu caminho e o caminho dela, ficamos a olhar um para o outro, agora sem vontade de fugir!
-então até segunda.
-no sítio do costume?
-sim, pode ser. Antes que ela virasse costas perguntei, gostas de jazz?
-depende do jazz!
-tenho bilhetes para sábado à noite na casa da música.
-a que horas?
-deixa ver, acho que é às 10 da noite. Carlos Martins, talvez não conheças, mas de certeza que conheces Bernardo Sassetti no piano.
-sim conheço, é muito bom. Então às 9h30 na casa da música? Tomamos o tal café antes.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

reflexo ou a montra onde jazem já mortas as moscas!

Alternando entre fraca, picada pelo vento, e forte, caindo aprumada, a chuva alimentava a esperança de a ver descer a rua e ali, sob o toldo da mesma loja, procurasse refúgio. A mesma rua de sempre, aquela que desci junto ao passeio, dissoluto na água, a mesma que me levou até ao mar, onde me tornei no que sou quando não sou gente!
Ela não vinha, pouca gente passava, olhava para a montra, vazia como sempre e pensava que hoje teria sido um bom dia. Contemplava o meu reflexo e pensava no mito de Narciso, de olhos brilhantes, cabelos anelados como os de Apolo, o rosto oval e o pescoço de marfim, impedido de se ver, apaixona-se por ele mesmo!
Um outro reflexo surge junto ao meu, o leve quase imperceptível perfume a rosas atravessa as cerca de 25 milhões de células olfactivas, tenho quase a certeza que as atravessou a todas! Disfarça um sorriso, prende-o pelo canto esquerdo da boca enquanto diz:
-interessante esta montra!
Ainda sob o efeito inebriante que o seu perfume provoca lá sai qualquer coisa como uma única letra:
-é!
E continuamos a olhar a montra, engulo em seco e procuro algo inteligente para dizer, o sangue retorna ao cérebro depois de se ter esvaziado todo algures pelo odor a rosas!
-não me canso de olhar para ela! Digo quase em desespero…
-qual delas? Pergunta ela, soltando o riso até agora contido, apontando para as moscas que jazem mortas sob a cartolina comida pelo sol!
- aquela ali, digo apontando para o seu reflexo, a dos cabelos ondulados, de olhos quase verdes.
-não é má! mas olha que aquele ali também não é de se deitar fora! Aponta para um homem corpulento, um trolha, que no interior da loja nos olha com estranheza. - Aquela barriguinha peluda, tão sexy!
-queres conhece-lo? pergunto, mantendo um ar sério.
-talvez noutro dia. diz, num tom sonhador, ao mesmo tempo trocista, mantendo o sorriso nos lábios. É a primeira vez que nos olhamos frente a frente. E aproveito a deixa para a convidar para um café.
- ainda nem almocei! reclama
-eu também não, mas já vinha preparado para te convidar para um café!
-então já vinhas preparado?! Não parecia…
-é, nunca corre lá muito bem!
-então vamos almoçar?
-costumas ir almoçar com estranhos?
-só as terças-feiras, às sextas não é muito comum, por ser para ti abro uma excepção, não somos assim tão estranhos, já nos abrigamos duas vezes no mesmo sitio!
-duas? pensei que não me tinhas visto naquele dia em que chovia a potes, cântaros e alguidares…
-claro que vi! o dia não me estava a correr nada bem, foi um mau dia.
-se foi…

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

mito de um garanhão

Um som profundo, distante, como o bater do coração. O leve tamborilar do sangue bombeado, atirado contra as veias, e acordo. Não é dentro, é um som do exterior, por baixo da minha cabeça, abafado pelas penas da almofada, do relógio ainda preso ao pulso. Ainda? Mas que horas são? O despertador deixou passar a hora, impunemente, sem sequer uma repreensão, e eu já estou atrasado, adormeci assim vestido. Lembro-me de estar sentado na beira da cama, enquanto tirava as botas, cansado, tão cansado que mergulhei no leito e em apneia me deixei ficar.
Não tenho tempo para analisar o que aconteceu, nem para um banho, nem mudar de roupa e esta barba que começa a cobrir o rosto e ao longo do dia vou ouvi-la crescer como ervas daninhas. Tenho de sair, no elevador ato os cordões, corro para o autocarro, se perco este então nunca chegarei a tempo, e logo hoje, logo hoje que fiquei com a responsabilidade de abrir a porta, eu que chego sempre a tempo. Cai uma chuva fraca, daquelas que nem parece que está a chover, mas que depois molha os que são tolos por pensar que não molhava!
E chego mesmo em cima da hora, parece que tão em cima que a pisei, e coitada ainda grita! Os olhares medem o tamanho da barba, a mesma roupa de ontem, o cabelo espetado para o lado em que adormeci: “Deve ter sido cá uma noite! Ganda maluco, as miúdas não te largam!”
Estou sem pequeno-almoço, sem jantar e sem lanche, a ratazana que habita o meu estômago teve ninhada! Mas pior que tudo é a falta do meu vicio, a falta do amargo e quente café!
Hora de almoço: tenho a peregrina ideia de ir a casa tomar banho e mudar de roupa, chove a potes, alguidares, panelas e tudo mais e abrigo-me no mesmo toldo da mesma loja, aquela de montra que continua vazia. E ela chega com o perfume de rosas, o cabelo preso ao cimo da nuca, e o rosto limpo e perfeito, onde moram uns olhos que não olham para mim. Cheiro a cão molhado, nem eu olharia para mim nesta triste figura e entro na chuva, esqueço as rosas e desejo diluir-me no aguaceiro, escorrer rua abaixo junto ao passeio, junto aos pés dela, verter no bueiro, escoar pelo esgoto, mergulhar de cabeça no rio e então desaguar no imenso oceano, e de novo tornar-me cartilagem, escama, dente afiado e barbatana.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

procura-se

Procura-se a menina que hoje se abrigou da chuva que caia imensa, sob o toldo daquela loja de montra vazia! Tinha cabelo ondulado, tocado por minúsculas gotas de água. seriam umas 13h, ia a casa almoçar, e abriguei-me mesmo ao seu lado! o perfume era de rosas, delicado quase imperceptível. Se por ventura vir este meu recado, deixe um comentário, de preferência um simpático. gostei muito da companhia, mesmo que tenha sido apenas durante um bocado! Até a chuva ter parado, e ela ter seguido rua acima, na direcção oposta da minha!