sexta-feira, 8 de julho de 2011

mãe

Houve um tempo antes do tempo, antes de eu nascer, o tempo da concepção, o tempo dentro do ventre em que fui carne e sangue dela. O dia em que nasci foi dos mais frios desse Inverno, mas ela não se lembra. Diz que não se lembra do céu escuro, das janelas velhas, da cor das paredes, ou do meu pai ali ao lado. Não se lembra com clareza das dores, nem do tormento por que passou, não se lembra de sangrar nem de gritar, só se lembra dos meus dedos esguios e abertos, aflitos. Lembra-se da pequena cabeça perfeita de cabelo negro, do cheiro que sentia ao mergulhar a cabeça em mim, do calor nos seus braços, dos lábios e nariz pequeno. Roxos os pés, contou os dedos.
Não me lembro desse tempo, só sei do que ela me conta dele, enquanto estou sentado ao colo dela, rodando a chupeta vermelha vezes sem conta até adormecer, disso eu lembro-me.
Lembro-me de um dia quente no fresco do cimento, jogadores de futebol esperam a sua vez para serem empastados de uma mistura de farinha e água que a minha mãe cozinhou num pequeno tacho, ao lado a caderneta aberta no chão da varanda. Ela senta-se na soleira da porta e fica a olhar com um sorriso. É a minha primeira memória e é junto dela.
Por volta da mesma altura, num calor idêntico, junto à erva que cresce alta no acesso à garagem, há um rato inanimado do tamanho da minha mão. Passo os dedos pelo pêlo macio, mas imóvel, é fofo de olhos fechados e patas recolhidas. Pego nele com a maior das cautelas e apresento-o de palma aberta à minha mãe. Não entendo o gesto dela de me sacudir a mão acompanhado de um grito. É a primeira vez que ouço falar na morte.

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