segunda-feira, 20 de junho de 2011

desistir

 Debruçado sobre o lavatório, encho as mãos de frieza e em vão lavo o rosto, tentando que a água que desaparece pelo ralo leve esta perversidade. Libertou-se da incandescência, despegou-se do granizado e escorre viscosa num só sentido, numa só corrente.
Não me reconheço no reflexo, quem é aquele pergunto, aquele ali de olhos raiados, escuros e frios, com o rosto lavado de sentimentos, molhado de rasgos de água que correm pelas veias dilatada do pescoço e perdem-se pela pele nua do tronco. A inspiração esforça as abas do nariz obrigando o ar a entrar, os intercostais elevam-se para o aumento da caixa torácica, mesmo assim nem toda a atmosfera que envolve a Terra seria suficiente para encher o vazio.
Sinto que vou sufocar cada vez que o nó na garganta vai apertando.
Acumulei, absorvi tudo como uma esponja, cada mililitro, até não existir mais como. E vomito, em violentas contracções da faringe, vomito o ódio impregnado, a culpa, a dor, não de um azul prussiano tingido, mas um crude viscoso tremendo, enchendo a sanita das minhas perversões.
-Deita tudo fora, só te estás a consumir, a sofrer.
Não há uma presença física nesta voz, no entanto consigo sentir o calor no meu ombro como se pousasse nele a mão para me acalmar. Exausto, sento-me no chão apoiando as costas na banheira. O diabo atrás de mim deitado estende os dedos necrosos onde mais uma vez volta a pender a mortalha.
-já deixaste bem clara a tua posição, se não entendem o problema deixa de ser teu!
–mas eu pedi-te uma opinião?
-nem precisas…por ser para ti eu ofereço!
-não tens mais nada para fazer do que me aparecer assim?
-claro que tenho, mas adoro as nossas conversas, são sempre tão divertidas, tens um sentido de humor irreal…
Devolvo o charro e deixo-me cair dentro da sensação confortável do fumo inalado.
-de quem é a outra voz?
-não faço ideia, tanto pode ser Deus como o primeiro-ministro! Pode ser real como a tua rainha que acaba de acordar, ou pode ser como eu e os meus charros, fruto da tua imaginação!
Penélope bate à porta perguntando se estou bem, sento-me na beira da banheira. Passa a mão pelo meu rosto preocupada, descanso-a dizendo que daqui a nada volto à cama beijando-lhe as pontas dos dedos.
-que pecado… que tentação… e tu aqui a destilar culpas e dores! Esquece essa merda, sinceramente não sei o que ela vê em ti, mas seja o que for não mereces… e ainda perdes tempo a pensar em quem magoas, no fim vais acabar por a magoar a ela! Se eu estivesse no teu lugar, estava na cama bem encostado aquele corpinho…
As minhas mãos saltam directas para o seu pescoço largo e vivo de artérias, apertando-o e comprimindo com todas as forças que me restam, as asas abertas arrastam tudo à passagem. O desgraçado ainda escarnece de mim, divertido com a minha fúria, não lhe inflijo qualquer sofrimento, parece que só sente prazer!
-é isso mesmo anjo, dá luta… não desistas!

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