segunda-feira, 18 de julho de 2011

sofá

O estofo cinzento gasto nos cantos, braços bastante ruços do uso, respeitável pela idade visível nos fios ao dependuro, mas mesmo assim confortável pelo conteúdo. Costas arrimadas de almofadas balofas e trombudas, dispersas e pachorrentas numa desordem casual. Rasga-se o tecido numa boca, antes de falar cospe em pedaços a espuma de enchimento. Solta a língua de forro esverdeado e fala num dialecto errante e singular, frases de preguiça e ócio, cheias de sorna e mandriice.
Se a todos os ouvidos fosse familiar esta semântica, certamente haveria muitos olhos arregalados e bocas boquiabertas. Os dotes descritivos do meu sofá, espectador assíduo de momentos íntimos, fariam corar o mais descarado dos rostos.
É um exímio contador de histórias, umas genuínas, outras nem por isso. Descendente directo de um suffah que serviu de trono a governantes árabes, e de um récamier com encosto em ambas as extremidades, conhecido como fainting couch, onde frequentemente as damas do período Vitoriano desmaiavam por dificuldades em respirar dentro do espartilho.

Confessou-me um destes dias que tinha um sonho, não era um sonho que falava da necessidade de união e coexistência harmoniosa entre homens e sofás, mas um sonho de ver publicado um dos seus relatos. Fui nomeado com grande pompa e circunstância como tradutor oficial, acumulando também as funções de escrivão da puridade.

E então reza assim a história:
“Corpos quentes no assento,
se contorcem e do sono me despertam
roçando a entretela, provocando atrito.

Rubescentes, contorcem-se, remexem-se do pudor.
a paixão ferve à ebulição, agitada em lume lento.
Línguas que se enlaçam, se entendem no sabor,
humedecem e permanecem em continuo movimento.

prazenteira, oscilante num vai e vem permanente.
Clítoris que endurece, estremece
e perturbada, empurra o pretendente.

Suor que escorre dos amantes,
juntamente com o fluido feminino,
Oh! Doçura divina dos deuses,
infâmia impura que me mancha o tecido!

Duro e viril, o pénis golpeia a montada,
Arqueiam e arfam ruidosos,
gemidos leitosos de orgasmo.”

sexta-feira, 15 de julho de 2011

S. João

O primeiro balão sobe nos céus ainda raiado de sol, oscilante, indeciso pelo vento que o empurra, divertido colorido, sobe até desaparecer do meu campo de visão. O calor das brasas já se sente à distância, os pimentos são os primeiros a sentir a grelha, um cheirinho vai-se espalhando e as sardinhas cobertas de sal grosso são alinhas assim que os pimentos são virados. Ela abraça-me e rouba um trago da minha cerveja. Sussurra ao ouvido: cheiras a sardinha, tubarão!
Mesas improvisadas dispõem-se, cadeiras e bancos encavalitam-se, cotovelos que se guerreiam pelo espaço, impacientes as batatas cozidas com casca, esperam pelo derrame do azeite e pelo pimento cortado escamado da pele tostada. A broa que veio de Avintes, cortada ao alto como colunas gregas, grita pela sardinha, e as azeitonas escolhidas a preceito para a ocasião, vão padecendo pelos pires em forma de caroço! O caldo verde já está a ser servido na louça de barro, alguém se esqueceu da tora no fundo da panela. Os copos e tigelas enchem-se de tinto, unem-se aos risos em brindes à noite que se demora, ao dia que não se quer ir embora.
E as sardinhas vão deixando as grelhas, gordas e de pele dourada pelas brasas, quando as últimas são levadas em travessas, já o sol refreou e o céu está duplamente estrelado com balões de S. João!

Dá-me a mão bem apertada e guia-me pela multidão, martelos que guincham intermitentes, martelam uma e outra vez, nem a “monaria” se livra de uma marretada bem certeira! E o fogo explode no ar, cruza o nocturno e acende os céus de um lado ao outro. Procura os meus braços em volta dela, sinto como bate descompassado o seu coração, agitado da emoção e ainda acelerado da corrida por entre a massa de pessoas que se comprimem como um rio entre margens.
Num remoinho de cheiros, sopros queimados da pólvora, alhos-porros e erva-cidreira que dançam de cabeça em cabeça, para quem teima em manter a tradição, regressamos a casa onde a minha avó já prepara a cevada e a regueifa com manteiga.

Diz-se que a água está benzida nessa noite, protegendo os audazes das doenças durante o ano. Sei de uma praia deserta, quase a meia hora de viagem, é para onde a levo antes que o dia desperte e o feitiço termine. A água enregela os corpos despidos, ela pela minha mão confia no mar e deixa-se guiar, do mesmo modo que me deixei guiar pela multidão, e mergulhamos no sal frio entrando numa onda que nos percorre, pois só assim o banho é “virtuoso”, excomungando o mal dos amantes!
Enrolamo-nos na toalha, os corpos juntos aquecem-se e tornam-se rubros e apetecíveis. O quarto-minguante de lua protege-nos sobre a areia húmida da noite, e ela recebe-me no meio das suas pernas cobertas de salitre!

terça-feira, 12 de julho de 2011

avó

Inclinado na janela de beiral vermelho, conservada a madeira pela pintura imperfeita saliente de bolhas, lembro-me perfeitamente do seu aspecto peculiar de uma janela com sarampo. Pequenos orifícios abriam-se por onde a chuva havia de escorrer, e os meus dedos cabiam neles, como lagartas curiosas sujas de pó.
A minha avó segura-me, passando o braço em volta de mim, e conta-me a história de cada gato que vagueia preguiçoso os telhados adjacentes ao velho palacete onde vivemos.

O amarelo tigrado era o mais imponente deles todos.” -observa como é grande a sua cabeça, digna de uma coroa!” Dizia a minha avó, numa voz distante que nem o tom me é familiar. Torrão foi o nome que recebeu e era sempre o primeiro a servir-se dos parcos restos que ela lançava ao telhado à revelia dos vizinhos. A gatinha malhada de branco em pêlo preto era das suas preferidas, Tia era mãe extremosa e sempre atenta, apesar da falha de uma vista, perdida sabe-se lá se por doença ou numa bulha. O preto magro como um ramo alto de árvore, saltava paredes como se não houvessem leis da física, mas isso a minha avó não sabia explicar, só me sabia dizer que quando nasceu era bem negro e que o sol lhe foi comendo a cor do pêlo. Trinca era como lhe chamava. E depois ainda havia o Turras, um gato pachorrento arraçado de siamês, que apesar do seu tamanho era manso como um gatinho bebé e pouco mais sabia fazer que passar o dia a dormir e a distribuir turras, nem sempre bem recebidas.
Já não moram na minha memória todos os gatos que se alimentavam por ali, indiferentes a quem os sustentava e lhes acrescentava um nome bem como uma história sobre as suas aventuras e desventuras de felinos indomáveis!

Um lenço de seda vermelho vivo cobre parte do cabelo, caindo junto à fase, dos lóbulos rasgados a quente, pendem brincos compridos de contas brilhantes que lançam reflexos de luz em todas as direcções. Entre os olhos negros cheios de alma, possui um sinal vermelho sobre a pele morena, vincada de rugas sábias. É assim que quero perpetuar a minha avó na memória, este rosto temperado pelo sol e pelos anos, os seus braços que me prendem repletos de pulseiras douradas e prateadas, lisas ou ornamentadas. Não aquele esquelético olhar vazio da dor, a pele cinzenta sedenta de vida, deitada no leito à espera da morte, aquele último beijo em que me tomou a face nas suas mãos, pergaminho antigo a desfazer-se sobre folha viçosa de limoeiro!

Tinha cinco anos quando me despedi dela e dos gatos que habitavam os telhados adjacentes ao palacete, com eles deixei ficar a chupeta de estimação, a última de todas. Um magnífico elefante decorado com tecidos ricos e pinturas florais desceu a rua comigo montado sobre a sua cabeça, coberto por um enorme guarda-sol amarelo, todos os vizinhos vieram à janela admirar tamanha imponência. Da varanda do primeiro andar, os meus avós paternos estenderam os braços para me alcançarem e com facilidade me içaram do cimo do animal. As vestes principescas foram despidas, descalço e de roupas simples fui libertado no mundo.

A última vez que a vi, a sua imagem tornou-se nítida à medida que caminhava ao meu encontro numa extensão de areia sem fim, onde o mar tinha deixado marcadas as ondas. Primeiro um vulto alto, esguio, indistinto mas consciente na minha mente que se tratava dela, depois aproximou-se e tornou-se evidente, os olhos negros repletos de conhecimento, brilhantes como diamantes, a pele morena mas quente que tocava no meu rosto como tímidos raios solares.
“-como estás crescido! quase um rei...” Disse numa voz que sempre conheci mas nunca me lembrei. “–Mas ainda não chegou a tua hora, ainda é cedo meu príncipe, um dia voltaremos a estar juntos, mas não já.” E terminou a frase com um sorriso que rasgou o rosto em luz, e me atingiu como uma explosão silenciosa em que só senti e repulsão do ar, como se algo me puxasse para um túnel sem fim, e fileiras de luzes fluorescentes passam sobre mim...

sexta-feira, 8 de julho de 2011

mãe

Houve um tempo antes do tempo, antes de eu nascer, o tempo da concepção, o tempo dentro do ventre em que fui carne e sangue dela. O dia em que nasci foi dos mais frios desse Inverno, mas ela não se lembra. Diz que não se lembra do céu escuro, das janelas velhas, da cor das paredes, ou do meu pai ali ao lado. Não se lembra com clareza das dores, nem do tormento por que passou, não se lembra de sangrar nem de gritar, só se lembra dos meus dedos esguios e abertos, aflitos. Lembra-se da pequena cabeça perfeita de cabelo negro, do cheiro que sentia ao mergulhar a cabeça em mim, do calor nos seus braços, dos lábios e nariz pequeno. Roxos os pés, contou os dedos.
Não me lembro desse tempo, só sei do que ela me conta dele, enquanto estou sentado ao colo dela, rodando a chupeta vermelha vezes sem conta até adormecer, disso eu lembro-me.
Lembro-me de um dia quente no fresco do cimento, jogadores de futebol esperam a sua vez para serem empastados de uma mistura de farinha e água que a minha mãe cozinhou num pequeno tacho, ao lado a caderneta aberta no chão da varanda. Ela senta-se na soleira da porta e fica a olhar com um sorriso. É a minha primeira memória e é junto dela.
Por volta da mesma altura, num calor idêntico, junto à erva que cresce alta no acesso à garagem, há um rato inanimado do tamanho da minha mão. Passo os dedos pelo pêlo macio, mas imóvel, é fofo de olhos fechados e patas recolhidas. Pego nele com a maior das cautelas e apresento-o de palma aberta à minha mãe. Não entendo o gesto dela de me sacudir a mão acompanhado de um grito. É a primeira vez que ouço falar na morte.