terça-feira, 12 de julho de 2011

avó

Inclinado na janela de beiral vermelho, conservada a madeira pela pintura imperfeita saliente de bolhas, lembro-me perfeitamente do seu aspecto peculiar de uma janela com sarampo. Pequenos orifícios abriam-se por onde a chuva havia de escorrer, e os meus dedos cabiam neles, como lagartas curiosas sujas de pó.
A minha avó segura-me, passando o braço em volta de mim, e conta-me a história de cada gato que vagueia preguiçoso os telhados adjacentes ao velho palacete onde vivemos.

O amarelo tigrado era o mais imponente deles todos.” -observa como é grande a sua cabeça, digna de uma coroa!” Dizia a minha avó, numa voz distante que nem o tom me é familiar. Torrão foi o nome que recebeu e era sempre o primeiro a servir-se dos parcos restos que ela lançava ao telhado à revelia dos vizinhos. A gatinha malhada de branco em pêlo preto era das suas preferidas, Tia era mãe extremosa e sempre atenta, apesar da falha de uma vista, perdida sabe-se lá se por doença ou numa bulha. O preto magro como um ramo alto de árvore, saltava paredes como se não houvessem leis da física, mas isso a minha avó não sabia explicar, só me sabia dizer que quando nasceu era bem negro e que o sol lhe foi comendo a cor do pêlo. Trinca era como lhe chamava. E depois ainda havia o Turras, um gato pachorrento arraçado de siamês, que apesar do seu tamanho era manso como um gatinho bebé e pouco mais sabia fazer que passar o dia a dormir e a distribuir turras, nem sempre bem recebidas.
Já não moram na minha memória todos os gatos que se alimentavam por ali, indiferentes a quem os sustentava e lhes acrescentava um nome bem como uma história sobre as suas aventuras e desventuras de felinos indomáveis!

Um lenço de seda vermelho vivo cobre parte do cabelo, caindo junto à fase, dos lóbulos rasgados a quente, pendem brincos compridos de contas brilhantes que lançam reflexos de luz em todas as direcções. Entre os olhos negros cheios de alma, possui um sinal vermelho sobre a pele morena, vincada de rugas sábias. É assim que quero perpetuar a minha avó na memória, este rosto temperado pelo sol e pelos anos, os seus braços que me prendem repletos de pulseiras douradas e prateadas, lisas ou ornamentadas. Não aquele esquelético olhar vazio da dor, a pele cinzenta sedenta de vida, deitada no leito à espera da morte, aquele último beijo em que me tomou a face nas suas mãos, pergaminho antigo a desfazer-se sobre folha viçosa de limoeiro!

Tinha cinco anos quando me despedi dela e dos gatos que habitavam os telhados adjacentes ao palacete, com eles deixei ficar a chupeta de estimação, a última de todas. Um magnífico elefante decorado com tecidos ricos e pinturas florais desceu a rua comigo montado sobre a sua cabeça, coberto por um enorme guarda-sol amarelo, todos os vizinhos vieram à janela admirar tamanha imponência. Da varanda do primeiro andar, os meus avós paternos estenderam os braços para me alcançarem e com facilidade me içaram do cimo do animal. As vestes principescas foram despidas, descalço e de roupas simples fui libertado no mundo.

A última vez que a vi, a sua imagem tornou-se nítida à medida que caminhava ao meu encontro numa extensão de areia sem fim, onde o mar tinha deixado marcadas as ondas. Primeiro um vulto alto, esguio, indistinto mas consciente na minha mente que se tratava dela, depois aproximou-se e tornou-se evidente, os olhos negros repletos de conhecimento, brilhantes como diamantes, a pele morena mas quente que tocava no meu rosto como tímidos raios solares.
“-como estás crescido! quase um rei...” Disse numa voz que sempre conheci mas nunca me lembrei. “–Mas ainda não chegou a tua hora, ainda é cedo meu príncipe, um dia voltaremos a estar juntos, mas não já.” E terminou a frase com um sorriso que rasgou o rosto em luz, e me atingiu como uma explosão silenciosa em que só senti e repulsão do ar, como se algo me puxasse para um túnel sem fim, e fileiras de luzes fluorescentes passam sobre mim...

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